São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

JK, Lacerda e a Frente Ampla

Os dois adversários eram marcados pela paixão política e pelo senso de liderança

NO DIA em que inaugurou Brasília, JK fez questão de levar sua mãe até a cidade que criara. Ela olhou tudo em silêncio, sem deslumbramento.



Quando a cidade mergulhou em sua primeira noite de capital federal, comentou para a filha Naná: "Somente Nonô podia fazer uma coisa dessas!".
Conhecia o filho, pelo qual se sacrificara desde que ficara viúva. Para custear os estudos das duas crianças, ela passara por um período de quase fome. Enquanto os filhos comiam, ela tomava uma xícara de café com leite e explicava: "Era por causa do estômago". Vendera sua única jóia, lembrança de noivado, para ajudar na compra da primeira passagem de trem que levaria JK a Belo Horizonte, a fim de prestar concurso para telegrafista.
A família mantinha-a afastada das notícias que não eram boas. Ela não soubera da cassação de JK nem de seu exílio. Manter a própria mãe na ignorância da realidade era um suplício suplementar que castigava o filho, sobretudo naquela hora em que morria Naná. Quando o caixão da irmã baixou à terra vermelha -terra de Minas-, Juscelino se esforçou para evitar o soluço. À noite, sozinho, aí sim. Sentia-se órfão de um amor que o acompanhara desde a infância. Chorou tudo o que tinha direito.
Depois da missa de sétimo dia (ele aceitou o conselho de amigos que lhe pediram para que não fosse à igreja, a situação voltara a ficar tensa contra a sua presença no Brasil), JK veio ao Rio, em escala de retorno. Precisava cumprir outra missão pessoal: conhecer a neta, Ana Christina, primeira filha de Márcia. Era a oportunidade de fazer rápida visita às filhas. Pressionado pela imprensa, ele explicou que assumira o compromisso de não fazer qualquer pronunciamento, o "sursis" fora concedido sob condições, precisava voltar logo aos Estados Unidos. Mesmo assim, almoçando no apartamento de Márcia, em Copacabana, fez questão de responder à pergunta sobre um encontro que tivera com Carlos Lacerda em Lisboa: "Não. Não tive encontro algum. Tudo não passou de uma coincidência. Estivemos hospedados no mesmo hotel, no mesmo andar. Mas não trocamos uma palavra sequer". Na realidade, somente meses depois os dois políticos teriam o primeiro encontro para a formação da Frente Ampla.
O grande injustiçado pelo movimento militar de 64 iniciava um processo de absorção, sofria por estar longe do país, mas sabia que alguma coisa em breve aconteceria. Considerava sua carreira encerrada: chegara ao cume, sofrera o golpe do novo regime, seu temperamento nunca foi de chorar sobre o leite derramado, começava a "virar aquela página" de sua vida, fatalismo que o acompanhava há tempos, resíduo de heranças ciganas.
Justo nesse momento, recebe um estranhíssimo recado vindo do Rio: através de um amigo comum, o ex-deputado Renato Archer, Juscelino era perguntado se concordava em receber Carlos Lacerda para uma conversa. Conversa de trabalho. Trabalho que poderia dar certo e, mesmo que não desse, valeria a pena ser tentado.
O primeiro encontro entre os dois adversários foi mais fácil do que todos supunham. Ambos tinham muita coisa em comum, mas, sobretudo, eram realmente marcados pela paixão política e pelo senso de liderança. Se a Frente Ampla terminou melancolicamente, deveu-se à reação que provocou no governo e, talvez, em grau mais elevado, à divergência das bases, que não aceitaram a união da cúpula.
Enquanto Juscelino imprimia à sua vida no exílio um ritmo dinâmico, enquanto Jango, no Uruguai, voltara a ser um estancieiro bem-sucedido, Carlos Lacerda ficara no vácuo, sem direito nem à política (que deixara de existir em seu escalão civil) nem a mais nada, a não ser ruminar a frustração de não ser aquilo que podia ter sido. Após o movimento militar, ele se desinteressara pelo governo da Guanabara, achava tudo menor, insignificante, sonhando com atuação maior no âmbito federal. "É duro a gente se preparar a vida inteira para exercer uma função e na última hora ser impedido de fazê-lo."
Ele se sentia preparado para a Presidência da República e seus admiradores pensavam o mesmo. Formava-se a Frente Ampla, que provocaria o AI-5.

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