São Paulo, segunda-feira, 26 de maio de 2008

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análise/atriz

Prêmio ilumina trabalho delicado de uma anti-diva

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA, EM CANNES

O grande mérito do júri do 61º Festival de Cannes ao reconhecer o trabalho de Sandra Corveloni com o prêmio de melhor atriz está na coragem de chamar a atenção para um trabalho que, sozinho, não chama a atenção para si mesmo.
O prêmio foi considerado uma das surpresas da noite, pois a competição contava com pelo menos quatro filmes conduzidos por fortes personagens femininos, todos defendidos com garra por suas atrizes. Julianne Moore em "Ensaio sobre a Cegueira", Arta Dobroshi em "Le Silence de Lorna" (o silêncio de Lorna), Martina Gusmán em "Leonera" e Angelina Jolie em "Changeling" (a troca) vinham freqüentando as listas de apostas que antecederam a premiação nessa categoria -mas isso não significa que a decisão do júri tenha sido injusta.
Ao contrário, esse prêmio ilumina um trabalho delicado, construído com imenso talento, que apenas estava mais escondido pelas próprias características do trabalho de Sandra (que foge totalmente do formato diva ou da "grande interpretação feminina") e também pela própria estrutura de "Linha de Passe".
Como já foi dito, o longa-metragem de Walter Salles e Daniela Thomas não traz um protagonista evidente e possui um caráter essencialmente coletivo, com sua linha dramática que se divide de maneira um tanto uniforme entre os cinco membros dessa família da periferia de São Paulo (mãe e quatro filhos).
Mas a personagem de Sandra, de alguma forma, é a espinha dorsal do filme, na mesma medida em que Cleuza é a espinha dorsal dessa família, que resume as aflições e alegrias de tantas famílias das periferias de uma grande cidade brasileira.
Em um festival em que a maternidade foi um tema tão presente, a Cleuza de Sandra Corveloni foi uma das mães mais humanas e comoventes. Cleuza pode não ter uma grande causa para defender, como era o caso de todas as outras protagonistas. Sua grandeza está diluída em pequenos desafios do cotidiano, no desespero da mãe que fica a madrugada toda acordada enquanto o filho menor, rebelde por natureza, não volta para casa; na humilhação de ver a patroa substituí-la contra a sua vontade; e até mesmo na dor da possibilidade de ver o seu time de coração ser rebaixado.
Uma das características de Cannes é que há muitos filmes e poucos prêmios. Foram 22 longas em competição, dos quais apenas nove foram recompensados -ou apenas sete, se não forem considerados os dois prêmios especiais conferidos a Clint Eastwood e a Catherine Deneuve pelo conjunto de suas carreiras. Nesse contexto, o prêmio para Sandra Corveloni é uma merecida vitória, com um sabor todo especial.


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