São Paulo, segunda-feira, 26 de junho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVRO/LANÇAMENTO

Drauzio Varella "dá um jeito" em suas memórias

FERNANDO BONASSI
COLUNISTA DA FOLHA

Teve uma época em que o leite era entregue em vidro, as pessoas brigavam usando as mãos e, só muito de vez em quando, uns inocentes cabos de vassoura.
Teve uma época em que a "pizzaria" passava de porta em porta, nas costas de um carcamano que vendia lá seus pedacinhos da mezzo calabresa/mezzo mozarela. Teve uma época em que não havia antibióticos; depois, uma época em que eles funcionavam. Teve uma época em que o campo do São Paulo era... no Canindé?!
Loucura?! Não. Isso, e muito mais, está no novo livro de Drauzio Varella: "Nas Ruas do Brás".
O escritor, que infelizmente teima em continuar médico, conta o que viu num momento (década de 40) em que a zona leste da cidade ainda guardava ares provincianos, com carroças, cinema e futebol de rua.
Dizem que São Paulo muda sem parar. De fato, São Paulo muda de cara mais rápido que vadia no cio. Mas é só.
Quem rala cotidianamente pelo próprio prato de comida sabe que "essa pujança" não ajuda em muita coisa. Talvez até piore. Drauzio, que vende o almoço pelo jantar, sabe disso.
Embora poucos anos mais moço que o autor, tenho 37, nasci no bairro ao lado, a Mooca (cá entre nós, lugar muito mais legal que o dele). As carroças e pizzaiolos ambulantes estavam sumindo, mas ainda era possível vê-los no início da década de 70, quando cantar o Hino Nacional na escola, diariamente, parecia todo o conteúdo pedagógico à disposição da molecada atônita.
Tomo a liberdade de contar essa passagem pessoal aqui, pois talvez tenha sido a última leva pra qual a rua ainda era espaço público pacífico; era alternativa de lazer e não, basicamente, alto risco de encontro com a morte, como acabou se tornando.
Eu ainda tinha "turma", ao contrário de hoje, quando a moçada é mais chegada numa "gangue". Ok! Sem papagaiada nostálgica: todos nós temos de sobreviver em terras latifundiárias, e cada geração encontra sua saída.
Usei o verbo "contar" pra me referir ao livro. É uma excelente palavra pra definir a literatura de Drauzio, que tenho o prazer de escarafunchar nos últimos 12 meses. Todos nós sabemos o quanto é difícil "ouvir". Transferir a atenção egoísta pra história do outro é uma doação para a qual nem todos estão preparados.
O que o autor fez no seu recente livro "Estação Carandiru" já era, nesse sentido, um maravilhoso exercício de generosidade, ao reproduzir o texto de um universo cultural ao mesmo tempo tão perto e tão longe daqueles que podem abrir um jornal e ter o estômago forrado pra lê-lo, como fazemos aqui, prezado leitor.
Também dizem que a memória é traiçoeira, mas eu não entro nessa. A memória é espertíssima. Pra nós escritores, é bastante tentadora a idéia de revisitar acontecimentos e "dar um jeito neles".
Numa época em que a noção de salvação caiu em desgraça, a obra pode muito bem dar, retrospectivamente, algum "alento autocomiserativo" a quem se perdeu de Deus. Não é o caso aqui. Ao voltar-se pro próprio passado, o escritor "se deixa ouvir" com a mesma fluência e rigor com que ouviu os outros.
"Nas Ruas do Brás" é aparentemente destinado a crianças: livro com ilustração, fotografias e menos texto que o anterior. Mas vai se enganar demais quem pensar assim! Estamos diante de um daqueles poderosos textos de formação. Isto é, de um sujeito que não tem vergonha de ter valores e expressá-los artisticamente. Alguns valores, inclusive, meio fora de moda por essas bandas, tipo trabalho, solidariedade, honra apalavrada, honestidade... Coisas esquecidas que talvez esteja na hora da gente recuperar. Até por uma questão de sobrevivência!
Drauzio, muito obrigado... E vê se pára com "essa história de médico", pô! Tua literatura é o melhor remédio que você pode nos oferecer.


Nas Ruas do Brás
     Autor: Drauzio Varella (ilustrações de Maria Eugênia)
Editora: Cia. das Letrinhas
Quanto: R$ 19,50 (80 págs.)




Texto Anterior: Televisão: Exímio internauta, Marcelo Tas ainda é o tal
Próximo Texto: Música: Na cultura pop, MP3 equivale ao genoma
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.