São Paulo, segunda-feira, 26 de junho de 2000


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ANÁLISE

Não há como negar, ele era a cara do Brasil

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Há décadas o país finge que não vê, não ouve, não fala, mas agora que ele morreu de novo, ainda mais é preciso gritar: Wilson Simonal era a cara do Brasil.
Se sua música andou esquecida, ainda assim era importante (e política), e ainda assim tudo que aconteceu com ele era (e é) a cara de um Brasil que, no todo, e não apenas por seus simonais, prospera em avançada putrefação.
Guardadas as incertezas de uma história para lá de nebulosa, Simonal foi caso exemplar (e tão corriqueiro) do brasileiro pobre e oprimido que é repentinamente investido de fama e se vê no centro do quase sempre sórdido círculo das vaidades e do poder.
Simonal surgiu no seio da bossa nova, mas, brasileiro expansivo e faminto, logo cedo se espraiou por todos os leitos que podia mirar, faminto de todos.
Desde "Wilson Simonal Tem "Algo Mais" " (64 -veja bem, ele surgiu no advento do regime militar), já fazia bossa sem querer desdenhando de seus maneirismos.
Pois a bossa em Simonal era sem pejo, truculenta, quase grosseira. Batia um bolão com Elis Regina e admirava a bossa traindo-a, aprendendo de Elza Soares e Miltinho o que era o pouco sutil samba-jazz e de Jorge Ben o que seria o transgressor samba-rock.
Todos queriam meter o bedelho no samba, e Simonal mais que todos. Com corpo e alma de sambista, se abria para jazz, soul, funk, rock'n'roll, jovem guarda. Era impuro, cheio de vida. Contaminava a MPB e o samba, último bem estatal da cultura brasileira.
Desideologizado -o brasileiro médio tem sido, cada vez mais-, interpretava da canção de protesto esquerdista de Geraldo Vandré e Chico Buarque ao samba-canção direitista de Chico Anysio e Flávio Cavalcanti. Ajudava a revelar Gilberto Gil e Cassiano, gravando-os antes deles mesmos.
Galinha dos ovos de ouro da Odeon (hoje EMI), virou o maioral, estourou na TV. Os olhos brilharam. Infantilizou-se. Cantou "Meu Limão, Meu Limoeiro" (66), "Os Escravos de Jó" (67), "Pára, Pedro" (67), "Eu Fui no Tororó" (69). Inocentes úteis, os brasileiros amaram-no.
Bêbado de êxito, lubrificou a caricatura do malandro, via "pilantragem", "movimento" arquitetado em bastidor por Carlos Imperial e Ronaldo Bôscoli, em arranjos por Cesar Camargo Mariano, em composições por Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, em canto por Evinha e Claudette Soares, em modos por Elza Soares & Garrincha.
Inocente útil, apaixonou tropicalistas, andou de flor amarela na boca e não entendeu direito o AI-5. Em 68, ostentava em LP gravata-borboleta, terno, água-de-coco, praia e carrão vermelho e antecipava sua tragédia, gracejando que "quem não tem suingue morre com a boca cheia de formiga".
O terror militar apanhou Simonal no auge de sua "alegria, alegria". Inocente útil (ou não?), deu jeitão de "hino do regime" ao samba-rock "País Tropical" (69), do então também inocente útil Jorge Ben com o Trio Mocotó.
Estava no auge da forma artística. Em "Simonal" (70) e "Jóia, Jóia" (71), reorganizou a balbúrdia de referências e começou a formular um soul-funk-pop bem abrasileirado, cafajeste, todo seu.
Falastrão, começou a mais se enroscar ao evocar bravatas de quartel para se safar de encrencas e mutretas particulares -era amigo dos milicos, explicou.
De inocente útil converteu-se em culpado inútil. Colaboracionista? Bobo alegre? Bode expiatório? Azarado? Vilão? Injustiçado? Ora, mas o brasileiro médio não é tudo isso ao mesmo tempo? Talvez ele fosse.
Do inferno em que se viu afogado, emergiram discos maciços -"Se Dependesse de Mim" (72), "Olhaí, Balândro... É Bufo no Birrolho Grinza!" (73, de título cifrado, pois que a treva censora colhia de Buarque a Simonal), mais de longe "Dimensão 75" (74).
Antes da "dimensão 75", em 74, a guilhotina beijou seu pescoço. Condenado à prisão e à suspeita de que fosse dedo-duro do regime, virou leproso.
A RCA (hoje BMG) o abrigou na tempestade, e veio ao mundo "Ninguém Proíbe o Amor" (75), tratado maior de isolamento no seio histórico da MPB.
Agarrou-se à tese de que música e política fossem dissociáveis, à súplica de que a canção (se não os colegas e antagonistas) o absolvesse. Estava pleno de razão, ainda que na prática tal desenlace fosse talvez impossível: sua música era mesmo de quilate.
Acontece que era -como todo brasileiro- animal político, mesmo sem saber. Não conseguiria se desvencilhar.
A indústria o desempregou (ok, ele se autodestruía, crispando o bem maior, seu gogó) e o boicotou. Seus hits não foram mais regravados, os artistas pararam de citá-lo, seus discos saíram para sempre (até hoje) de catálogo.
Em 2000, é como se houvesse sido apagada, junto com o trauma quiçá causado pelo próprio Simonal, a passagem do artista pela MPB. Criminosas, as gravadoras cobrem de obscurantismo o passado de um país já tão defeituoso.
Soará hipócrita uma cruzada reeditora agora, mas é preciso marcar que ela é necessária. Agora que ele morreu e morreu e morreu, o Brasil de Pitta (Maluf), ACM e FHC perde um de seus vilões favoritos. Quem sabe ao menos aproveita a orfandade para se repensar um tiquinho.
Do ninho dramático de Simonal, ficam dois filhos também artistas, com tudo para recompor o melhor e anular o pior de Wilson. Do ninho trágico brasileiro, ficam simonais a toda esquina e em cada cúpula, de onde vão renovando, no dia-a-dia, a fria e feia história daquele que -dizem- fez há pouco 500 tristes anos.





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