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ANÁLISE
Não há como negar, ele era a cara do Brasil
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Há décadas o país finge que não
vê, não ouve, não fala, mas agora
que ele morreu de novo, ainda
mais é preciso gritar: Wilson Simonal era a cara do Brasil.
Se sua música andou esquecida,
ainda assim era importante (e política), e ainda assim tudo que
aconteceu com ele era (e é) a cara
de um Brasil que, no todo, e não
apenas por seus simonais, prospera em avançada putrefação.
Guardadas as incertezas de uma
história para lá de nebulosa, Simonal foi caso exemplar (e tão
corriqueiro) do brasileiro pobre e
oprimido que é repentinamente
investido de fama e se vê no centro do quase sempre sórdido círculo das vaidades e do poder.
Simonal surgiu no seio da bossa
nova, mas, brasileiro expansivo e
faminto, logo cedo se espraiou
por todos os leitos que podia mirar, faminto de todos.
Desde "Wilson Simonal Tem
"Algo Mais" " (64 -veja bem, ele
surgiu no advento do regime militar), já fazia bossa sem querer desdenhando de seus maneirismos.
Pois a bossa em Simonal era
sem pejo, truculenta, quase grosseira. Batia um bolão com Elis Regina e admirava a bossa traindo-a,
aprendendo de Elza Soares e Miltinho o que era o pouco sutil samba-jazz e de Jorge Ben o que seria
o transgressor samba-rock.
Todos queriam meter o bedelho
no samba, e Simonal mais que todos. Com corpo e alma de sambista, se abria para jazz, soul,
funk, rock'n'roll, jovem guarda.
Era impuro, cheio de vida. Contaminava a MPB e o samba, último
bem estatal da cultura brasileira.
Desideologizado -o brasileiro
médio tem sido, cada vez mais-,
interpretava da canção de protesto esquerdista de Geraldo Vandré
e Chico Buarque ao samba-canção direitista de Chico Anysio e
Flávio Cavalcanti. Ajudava a revelar Gilberto Gil e Cassiano, gravando-os antes deles mesmos.
Galinha dos ovos de ouro da
Odeon (hoje EMI), virou o maioral, estourou na TV. Os olhos brilharam. Infantilizou-se. Cantou
"Meu Limão, Meu Limoeiro"
(66), "Os Escravos de Jó" (67),
"Pára, Pedro" (67), "Eu Fui no
Tororó" (69). Inocentes úteis, os
brasileiros amaram-no.
Bêbado de êxito, lubrificou a caricatura do malandro, via "pilantragem", "movimento" arquitetado em bastidor por Carlos Imperial e Ronaldo Bôscoli, em arranjos por Cesar Camargo Mariano,
em composições por Antônio
Adolfo e Tibério Gaspar, em canto por Evinha e Claudette Soares,
em modos por Elza Soares & Garrincha.
Inocente útil, apaixonou tropicalistas, andou de flor amarela na
boca e não entendeu direito o AI-5. Em 68, ostentava em LP gravata-borboleta, terno, água-de-coco, praia e carrão vermelho e antecipava sua tragédia, gracejando
que "quem não tem suingue morre com a boca cheia de formiga".
O terror militar apanhou Simonal no auge de sua "alegria, alegria". Inocente útil (ou não?), deu
jeitão de "hino do regime" ao
samba-rock "País Tropical" (69),
do então também inocente útil
Jorge Ben com o Trio Mocotó.
Estava no auge da forma artística. Em "Simonal" (70) e "Jóia,
Jóia" (71), reorganizou a balbúrdia de referências e começou a
formular um soul-funk-pop bem
abrasileirado, cafajeste, todo seu.
Falastrão, começou a mais se
enroscar ao evocar bravatas de
quartel para se safar de encrencas
e mutretas particulares -era
amigo dos milicos, explicou.
De inocente útil converteu-se
em culpado inútil. Colaboracionista? Bobo alegre? Bode expiatório? Azarado? Vilão? Injustiçado?
Ora, mas o brasileiro médio não é
tudo isso ao mesmo tempo? Talvez ele fosse.
Do inferno em que se viu afogado, emergiram discos maciços
-"Se Dependesse de Mim" (72),
"Olhaí, Balândro... É Bufo no Birrolho Grinza!" (73, de título cifrado, pois que a treva censora colhia
de Buarque a Simonal), mais de
longe "Dimensão 75" (74).
Antes da "dimensão 75", em 74,
a guilhotina beijou seu pescoço.
Condenado à prisão e à suspeita
de que fosse dedo-duro do regime, virou leproso.
A RCA (hoje BMG) o abrigou
na tempestade, e veio ao mundo
"Ninguém Proíbe o Amor" (75),
tratado maior de isolamento no
seio histórico da MPB.
Agarrou-se à tese de que música
e política fossem dissociáveis, à
súplica de que a canção (se não os
colegas e antagonistas) o absolvesse. Estava pleno de razão, ainda que na prática tal desenlace
fosse talvez impossível: sua música era mesmo de quilate.
Acontece que era -como todo
brasileiro- animal político, mesmo sem saber. Não conseguiria se
desvencilhar.
A indústria o desempregou (ok,
ele se autodestruía, crispando o
bem maior, seu gogó) e o boicotou. Seus hits não foram mais regravados, os artistas pararam de
citá-lo, seus discos saíram para
sempre (até hoje) de catálogo.
Em 2000, é como se houvesse sido apagada, junto com o trauma
quiçá causado pelo próprio Simonal, a passagem do artista pela
MPB. Criminosas, as gravadoras
cobrem de obscurantismo o passado de um país já tão defeituoso.
Soará hipócrita uma cruzada
reeditora agora, mas é preciso
marcar que ela é necessária. Agora que ele morreu e morreu e
morreu, o Brasil de Pitta (Maluf),
ACM e FHC perde um de seus vilões favoritos. Quem sabe ao menos aproveita a orfandade para se
repensar um tiquinho.
Do ninho dramático de Simonal, ficam dois filhos também artistas, com tudo para recompor o
melhor e anular o pior de Wilson.
Do ninho trágico brasileiro, ficam
simonais a toda esquina e em cada cúpula, de onde vão renovando, no dia-a-dia, a fria e feia história daquele que -dizem- fez há
pouco 500 tristes anos.
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