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São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2003

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GASTRONOMIA

Paca, tatu, cotia, sim?

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Quem diria, a coluna está se tornando polêmica. Já estamos na tréplica do assunto "caça", que eu gostaria de esclarecer mais um pouco. Como numa crônica pedi desculpas por ter sido politicamente incorreta ao falar de pacas, tatus, cotias, não, veio ao meu socorro um leitor.
"Prezada Nina:
Permita-me fazer alguns comentários sobre a sua crônica "Mea-culpa...", do dia 20 de maio.
A utilização de carne de caça, para a sobrevivência simples ou na gastronomia, é uma realidade em todos os cantos do planeta. Faz parte da cultura e tradição dos povos tradicionais, tão louvados pelos verdinhos, como diz você.
Do Quênia à Itália, passando pela China e Austrália, não há país no mundo que não utilize seus bichos do mato.
E uma coluna que aborda mais do que o simples cozinhar tem todo o direito -a obrigação até, se me permite- de tratar das tradições dos nossos povos. E por aí passa a culinária da carne de caça. A própria literatura sempre trouxe várias receitas de paca, cotia, pato-do-mato. É um conhecimento que, nestes tempos de patrulha ideológica e de simplificação à la fast food, estamos perdendo, para prejuízo das nossas tradições e da nossa cultura.
Por resgatar essas informações, a coluna não merece críticas, merece aplausos.
E, por triste ironia, essa censura vem a prejuízo do próprio ambiente. Afinal, se todos comêssemos paca, tatu, cotia, anta, capivara e macaco, teríamos obrigatoriamente que ter muito mais ecossistemas preservados para que a produção de fauna pudesse atender à demanda.
Como só se come filé bovino e frango, temos a pecuária extensiva e a agricultura derrubando nossas matas, ocupando nossos campos, acabando com a casa dos "bichos do mato", sem que ninguém chore por isso, sem que se perceba que bicho que vem comer na nossa mão já é menos bicho do mato e mais mascote, mais "gracinha".
Por que se aceita o manejo florestal da Amazônia, onde o ciclo de reposição das árvores é de pelo menos 20 anos, e não se permite o uso da fauna nativa que se repõe a cada ano? Por que se estimula cultural, econômica e financeiramente a pecuária e se reprova o consumo da carne selvagem?
A bovinocultura simplifica os ecossistemas onde moram dezenas de espécies animais e vegetais porque derruba matas e cerrados, substituindo essa riqueza vegetal, que abriga uma diversidade animal, por uma única espécie vegetal alienígena, o capim para o boi pastar. Censura-se o uso da fauna nativa e come-se um boi antiecológico.
Do ponto de vista do ótimo ambiental, o que se busca é, de um lado, a preservação (ou seja, a intocabilidade) de espécies e ecossistemas ameaçados e, de outro, a conservação (ou seja, o uso sustentado) das outras espécies.
Claro que, como tudo na vida, é preciso ter critério. Mas, na tentativa bem-sucedida -devo lamentar-, misturam-se alhos com bugalhos, e a utilização de nossa fauna vira receita para extinção! E ninguém percebe que, sem a casa, os bichos desaparecem.
O uso criterioso da fauna selvagem me parece atender impecavelmente a todos esses requisitos. E nos traz de volta ao início dessa história, aquela parte que fala dos países desenvolvidos, altamente industrializados, pequenos até, densamente povoados, que, apesar de tudo, ainda têm bichos suficientes para servi-los em suas mesas, como fonte de sobrevivência ou como iguaria.
E nós, apesar de termos muitos, mas muitos bichos do mato, apesar de os consumirmos escondidos pelos sertões afora, estamos tentando inventar a roda, mais realistas que o rei.
À sua disposição, Ricardo Freire."

ninahort@uol.com.br


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