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GASTRONOMIA
Paca, tatu, cotia, sim?
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Quem diria, a coluna está se
tornando polêmica. Já estamos na tréplica do assunto "caça", que eu gostaria de esclarecer
mais um pouco. Como numa crônica pedi desculpas por ter sido
politicamente incorreta ao falar
de pacas, tatus, cotias, não, veio ao
meu socorro um leitor.
"Prezada Nina:
Permita-me fazer alguns comentários sobre a sua crônica
"Mea-culpa...", do dia 20 de maio.
A utilização de carne de caça,
para a sobrevivência simples ou
na gastronomia, é uma realidade
em todos os cantos do planeta.
Faz parte da cultura e tradição dos
povos tradicionais, tão louvados
pelos verdinhos, como diz você.
Do Quênia à Itália, passando
pela China e Austrália, não há país
no mundo que não utilize seus bichos do mato.
E uma coluna que aborda mais
do que o simples cozinhar tem todo o direito -a obrigação até, se
me permite- de tratar das tradições dos nossos povos. E por aí
passa a culinária da carne de caça.
A própria literatura sempre trouxe várias receitas de paca, cotia,
pato-do-mato. É um conhecimento que, nestes tempos de patrulha ideológica e de simplificação à la fast food, estamos perdendo, para prejuízo das nossas tradições e da nossa cultura.
Por resgatar essas informações,
a coluna não merece críticas, merece aplausos.
E, por triste ironia, essa censura
vem a prejuízo do próprio ambiente. Afinal, se todos comêssemos paca, tatu, cotia, anta, capivara e macaco, teríamos obrigatoriamente que ter muito mais ecossistemas preservados para que a
produção de fauna pudesse atender à demanda.
Como só se come filé bovino e
frango, temos a pecuária extensiva e a agricultura derrubando
nossas matas, ocupando nossos
campos, acabando com a casa dos
"bichos do mato", sem que ninguém chore por isso, sem que se
perceba que bicho que vem comer na nossa mão já é menos bicho do mato e mais mascote, mais
"gracinha".
Por que se aceita o manejo florestal da Amazônia, onde o ciclo
de reposição das árvores é de pelo
menos 20 anos, e não se permite o
uso da fauna nativa que se repõe a
cada ano? Por que se estimula cultural, econômica e financeiramente a pecuária e se reprova o
consumo da carne selvagem?
A bovinocultura simplifica os
ecossistemas onde moram dezenas de espécies animais e vegetais
porque derruba matas e cerrados,
substituindo essa riqueza vegetal,
que abriga uma diversidade animal, por uma única espécie vegetal alienígena, o capim para o boi
pastar. Censura-se o uso da fauna
nativa e come-se um boi antiecológico.
Do ponto de vista do ótimo ambiental, o que se busca é, de um lado, a preservação (ou seja, a intocabilidade) de espécies e ecossistemas ameaçados e, de outro, a
conservação (ou seja, o uso sustentado) das outras espécies.
Claro que, como tudo na vida, é
preciso ter critério. Mas, na tentativa bem-sucedida -devo lamentar-, misturam-se alhos
com bugalhos, e a utilização de
nossa fauna vira receita para extinção! E ninguém percebe que,
sem a casa, os bichos desaparecem.
O uso criterioso da fauna selvagem me parece atender impecavelmente a todos esses requisitos.
E nos traz de volta ao início dessa
história, aquela parte que fala dos
países desenvolvidos, altamente
industrializados, pequenos até,
densamente povoados, que, apesar de tudo, ainda têm bichos suficientes para servi-los em suas mesas, como fonte de sobrevivência
ou como iguaria.
E nós, apesar de termos muitos,
mas muitos bichos do mato, apesar de os consumirmos escondidos pelos sertões afora, estamos
tentando inventar a roda, mais
realistas que o rei.
À sua disposição, Ricardo Freire."
ninahort@uol.com.br
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