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CONTARDO CALLIGARIS
Por que a guerra no Iraque?
É provável que os americanos e os ingleses não encontrem no Iraque nenhuma arma de destruição em massa.
Você se lembra dos trailers que
foram fotografados, via satélite,
perto de fábricas iraquianas de
produtos químicos? Eles existem,
talvez fossem mesmo laboratórios, mas não contêm nem os restos de atividades suspeitas. Em suma, os serviços de informação
americanos acreditaram num
paco, e o governo, para justificar
a guerra, arredondou para cima.
Possivelmente, o regime iraquiano gostava de deixar pairar a
dúvida sobre seus recursos militares escondidos: quem sabe, um
blefe para impressionar os vizinhos. O drama é que estava na
mesa um jogador que acabava de
decidir o seguinte: não deixo para
menos, a partir de agora pago para ver, sempre. Esse jogador declarou que o Iraque tinha cartas fortes e foi para cima.
Blefe iraquiano ou não, resta
que o governo dos EUA parece ter
falhado com a verdade. Roberto
Pompeu de Toledo, na "Veja" da
semana retrasada, estranhava
que os americanos não estivessem
mais indignados com seu governo, que lhes teria mentido sobre
as razões da guerra. Afinal, na
cultura americana, mentir é um
pecado capital.
Certamente, a dita mentira dará vitalidade aos que se opunham
à guerra. Mas aposto que ela parecerá pouco relevante aos olhos
dos outros. Pois a razão da guerra, no espírito dos que apoiaram
a intervenção militar, não era a
presença de armas de destruição
em massa no Iraque.
Para entender o que sustenta,
nos EUA, o consenso majoritário
a favor da guerra, é preciso voltar
no tempo.
Logo após os atentados de 11 de
setembro de 2001, um comunicado da Al Qaeda comparou os terroristas, que encararam a morte
para cumprir sua missão, com os
americanos, amolecidos pelo conforto de suas vidas. Claro, os terroristas sairiam ganhando.
O presidente Bush comentou
que os militantes da Al Qaeda
passavam tempo demais assistindo à televisão americana, sobretudo durante o dia. Ou seja, eles
imaginavam os americanos a
partir daqueles programas televisivos que respondem às perguntas: o que fazer se sua filha é gay?
E se seu marido decidir mudar de
sexo? Quer impressionar seus
convidados? Quer fazer geléia
igual à da vovó? Quer ter um
bumbum firme? Eles deviam concluir pela inanidade desse povo
de telespectadores corrompidos
pelo egotismo e atormentados por
um narcisismo infantil.
Os terroristas tinham outras razões para supor que seu soco bateria num ventre mole ou, pior, fortalecido por abdominais malhados apenas para passear no calçadão de Miami. Afinal, há tempos
os EUA não manifestavam a determinação necessária para responder a ataques. Durante mais
de uma década, no Líbano, na Somália, no Iêmen, no Quênia etc.,
soldados e civis dos EUA foram
mortos. E os americanos levaram
cadáveres e desaforo para casa.
Na mesma linha, a primeira
guerra do Iraque, em 91, foi conduzida ao abrigo de uma grande
coalizão e, sobretudo, com uma
estratégia de risco mínimo para
as vidas americanas (bombardeios prolongados antes da invasão).
A resposta de Bush ao comunicado da Al Qaeda afirmava que
os EUA não são a caricatura proposta pela TV diurna ou pela série de filmes e livros que vai de
"American Psycho" até o último
romance de Don DeLillo, "Cosmópolis". Os anos 90, parecia dizer o presidente, foram uma excrescência frívola que afetou marginalmente as costas Leste e Oeste, sem comprometer o país profundo.
Como corroborar essa afirmação com fatos? Como demonstrar
que os americanos não estão deslizando numa decadência parecida com a que acabou com o Império Romano?
Uma guerra seria a prova ideal
da persistência da valentia americana. Mas uma guerra que não
fosse imposta pela simples necessidade de defesa (como foi a invasão do Afeganistão) e em que os
americanos arriscassem suas vidas.
Na nova guerra do Iraque, à diferença da de 91, os bombardeios
e a invasão começaram simultaneamente, como se os atacantes
não quisessem perder a ocasião
de um combate cara a cara. Além
disso, a demonstração seria ineficiente sem mortos e feridos americanos.
Para os que apoiaram a guerra,
a ausência de armas de destruição em massa no Iraque é só uma
incongruência na retórica que
justificava o conflito diante da comunidade internacional. Para
eles, não houve mentira sobre a
razão da guerra, pois nunca pensaram que a razão da guerra fosse a ameaça das supostas armas
químicas ou nucleares iraquianas. A guerra, para eles, era e é
contra a manha dos anos 90; seu
propósito é confirmar que os EUA
não são a Roma do império tardio, mas Esparta, cujo povo está
com garra guerreira, disposto a
pagar (com sangue) para ver.
Recentemente, em Nova York,
visitei a loja de um tatuador. Um
jovem e inusitado cliente, de terno Paul Stuart (uniforme da antiga farra de Wall Street), queria
tatuar seu braço. Tinha escolhido
a mais antiga bandeira americana: uma serpente erguida, prestes
a morder, com a inscrição "Don't
tread on me", não me pise.
Podemos apontar razões econômicas e políticas para a guerra.
Com isso, denunciamos apenas
racionalizações. O motivo da
guerra é, propriamente, psicológico.
ccalligari@uol.com.br
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