São Paulo, sábado, 26 de junho de 2004

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SHOW/CRÍTICA

Gal enfrenta a alegria -e a tristeza

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Ela voltou, a grande cantora. Nesse tempo em que andou ameaçando se perder de todas as coisas e de si, a artista Gal Costa, 58, anestesiou também uma série de sentidos: tato, paladar, audição, visão, faro...
Interrompeu contato com parte de seu público (eram várias as cadeiras vazias na estréia de "Todas as Coisas e Eu", quinta, enquanto lá em casa "Celebridade" quase acabava). Fechou olhos e ouvidos para repertórios, arranjos e modos novos de ser Gal Costa. Hoje, corre com gana atrás do prejuízo, de seis ou sete sentidos.
O resultado é um espetáculo todo errado, todo certo. Um acerto interrompe um erro que substitui um acerto que se muda num erro. Zune um código morse nervoso. A grande cantora se despe assustada, mas viva, muito viva.
Fotografa o próprio medo quando, ao cantar "Um Favor", de Lupicinio Rodrigues (que desde 77 é dela, muito dela), erra a letra feito uma colegial, cantora imatura em primeiro show. Estava ao violão ex-abandonado; pelada, se desculpa à platéia: "Que situação cantar e tocar, né?".
Tem a seu favor um roteiro que enfrenta um ponto nevrálgico de sua história recente: o ruído entre alegria e tristeza mal localizadas -equívoco central do CD (todo errado) que deu origem ao show.
Agora, começa o show à capela, com "Alguém Cantando" (Caetano Veloso, 77), tornando mais aguda (e bela) a melancolia inerente à canção. Revela que a Bahia também é triste, público segredo.
Pelo começo canta a carta de suicídio "Três da Madrugada" (Torquato Neto e Carlos Pinto, 73). Captura todo o desespero do poeta maldito; acerta. Pelo final avança uma hora no tempo e festeja o "galo cantou às quatro da manhã" de "Na Linha do Mar" (Paulinho da Viola, 73). Faz sambinha alegre, ignorando que "vou-me embora desse mundo de ilusão" também é suicídio; erra.
Acerta: canta a brejeira "Imbalança" (Luiz Gonzaga e Zé Dantas, 52), ri e sorri. Erra: canta a fatalista "Fim de Caso" (Dolores Duran, 59), ri e sorri. Tenta colocar a alegria em seu devido lugar, na pedra fundadora da Bahia "Alegria" (Assis Valente, 37). Não consegue ser tão alegre como a letra queria; acerta em cheio, errando. Nua.
Ao revisitar o mais fino de sua obra, veste-se da capa transparente da grossa melancolia. Nessa noite "Um Favor", "Assum Preto" (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 50, dela desde 71), "Vapor Barato" (Jards Macalé e Waly Salomão, 71) e "Força Estranha" (Caetano, 78, de Roberto Carlos e dela desde então) são as coisas mais lindas que já existiram.
São tristes, tristes, tristíssimas. Ostentam o semblante sério da maturidade, não o riso de Alice da juventude. Obrigado por ter voltado, grande cantora.
Como é difícil se despir, a mulher ainda se protege no artifício, no show que soluça. Os sambas-canção sabotam a fluência; um tosco montinho em que sobe para "Nada Além" (Custódio Mesquita e Mário Lago, 38, dela desde já) ameaça literalmente derrubá-la.
A cenografia de Bia Lessa entra em colapso no clímax de "Vapor Barato" -velas sobem e descem histericamente, inconformadas com o que está acontecendo: o reencontro da artista consigo. Nos uivos finais de sua canção-mito, a expressão se convulsiona e retorce; Gal se curva, vira loba, bicho, fera ferida. Esquece de temer a perda da beleza, escancara os cabelos brancos na fronte da artista.
Ao final, subiu feito onça uma montanha, não o telhado de gata de 93. A gente não se satisfaz, quer sempre mais, fica com vontade de ouvir discos e shows feitos só de vapores baratos. Não podemos exigir-lhe isso, mas ela já usa quatro ou cinco sentidos em prol da causa. Até amanhã, Gal.


Todas as Coisas e Eu
   
Artista: Gal Costa
Onde: DirecTV Music Hall (av. dos Jamaris, 213, tel. 0/xx/11/ 6846-6040)
Quando: hoje, às 22h, e amanhã, às 20h
Quanto: R$ 40 a R$ 80



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