|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
SHOW/CRÍTICA
Gal enfrenta a alegria -e a tristeza
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Ela voltou, a grande cantora.
Nesse tempo em que andou
ameaçando se perder de todas as
coisas e de si, a artista Gal Costa,
58, anestesiou também uma série
de sentidos: tato, paladar, audição, visão, faro...
Interrompeu contato com parte
de seu público (eram várias as cadeiras vazias na estréia de "Todas
as Coisas e Eu", quinta, enquanto
lá em casa "Celebridade" quase
acabava). Fechou olhos e ouvidos
para repertórios, arranjos e modos novos de ser Gal Costa. Hoje,
corre com gana atrás do prejuízo,
de seis ou sete sentidos.
O resultado é um espetáculo todo errado, todo certo. Um acerto
interrompe um erro que substitui
um acerto que se muda num erro.
Zune um código morse nervoso.
A grande cantora se despe assustada, mas viva, muito viva.
Fotografa o próprio medo
quando, ao cantar "Um Favor",
de Lupicinio Rodrigues (que desde 77 é dela, muito dela), erra a letra feito uma colegial, cantora
imatura em primeiro show. Estava ao violão ex-abandonado; pelada, se desculpa à platéia: "Que
situação cantar e tocar, né?".
Tem a seu favor um roteiro que
enfrenta um ponto nevrálgico de
sua história recente: o ruído entre
alegria e tristeza mal localizadas
-equívoco central do CD (todo
errado) que deu origem ao show.
Agora, começa o show à capela,
com "Alguém Cantando" (Caetano Veloso, 77), tornando mais
aguda (e bela) a melancolia inerente à canção. Revela que a Bahia
também é triste, público segredo.
Pelo começo canta a carta de
suicídio "Três da Madrugada"
(Torquato Neto e Carlos Pinto,
73). Captura todo o desespero do
poeta maldito; acerta. Pelo final
avança uma hora no tempo e festeja o "galo cantou às quatro da
manhã" de "Na Linha do Mar"
(Paulinho da Viola, 73). Faz sambinha alegre, ignorando que
"vou-me embora desse mundo de
ilusão" também é suicídio; erra.
Acerta: canta a brejeira "Imbalança" (Luiz Gonzaga e Zé Dantas,
52), ri e sorri. Erra: canta a fatalista
"Fim de Caso" (Dolores Duran,
59), ri e sorri. Tenta colocar a alegria em seu devido lugar, na pedra
fundadora da Bahia "Alegria"
(Assis Valente, 37). Não consegue
ser tão alegre como a letra queria;
acerta em cheio, errando. Nua.
Ao revisitar o mais fino de sua
obra, veste-se da capa transparente da grossa melancolia. Nessa
noite "Um Favor", "Assum Preto" (Luiz Gonzaga e Humberto
Teixeira, 50, dela desde 71), "Vapor Barato" (Jards Macalé e Waly
Salomão, 71) e "Força Estranha"
(Caetano, 78, de Roberto Carlos e
dela desde então) são as coisas
mais lindas que já existiram.
São tristes, tristes, tristíssimas.
Ostentam o semblante sério da
maturidade, não o riso de Alice da
juventude. Obrigado por ter voltado, grande cantora.
Como é difícil se despir, a mulher ainda se protege no artifício,
no show que soluça. Os sambas-canção sabotam a fluência; um
tosco montinho em que sobe para
"Nada Além" (Custódio Mesquita
e Mário Lago, 38, dela desde já)
ameaça literalmente derrubá-la.
A cenografia de Bia Lessa entra
em colapso no clímax de "Vapor
Barato" -velas sobem e descem
histericamente, inconformadas
com o que está acontecendo: o
reencontro da artista consigo.
Nos uivos finais de sua canção-mito, a expressão se convulsiona e
retorce; Gal se curva, vira loba, bicho, fera ferida. Esquece de temer
a perda da beleza, escancara os cabelos brancos na fronte da artista.
Ao final, subiu feito onça uma
montanha, não o telhado de gata
de 93. A gente não se satisfaz, quer
sempre mais, fica com vontade de
ouvir discos e shows feitos só de
vapores baratos. Não podemos
exigir-lhe isso, mas ela já usa quatro ou cinco sentidos em prol da
causa. Até amanhã, Gal.
Todas as Coisas e Eu
Artista: Gal Costa
Onde: DirecTV Music Hall (av. dos
Jamaris, 213, tel. 0/xx/11/ 6846-6040)
Quando: hoje, às 22h, e amanhã, às 20h
Quanto: R$ 40 a R$ 80
Texto Anterior: Música: Pulso de Tony Allen une Brasil e África Próximo Texto: Drauzio Varella: A cura do câncer Índice
|