São Paulo, sábado, 26 de junho de 2004

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LIVRO/LANÇAMENTO

Narrativas do autor paulista sobre facínoras "românticos" são reunidas em livro depois de 25 anos

Valêncio Xavier costura seus ícones bandidos

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aos 70 anos, o paulista Valêncio Xavier pode ser considerado o mais jovem escritor brasileiro em atividade. O paradoxo serve para demonstrar com que total insubordinação sua obra vem destilando nos últimos 30 anos toda sorte de impurezas alheias às normas literárias, mas quase sempre com alcance apenas subterrâneo. Valêncio costura ícones como um montador de cinema, outra de suas ocupações. Assim (e com precisão cirúrgica de legista), parece ser o único autor atual a continuar as intervenções visuais propostas por Machado de Assis em "Brás Cubas".
Mas a artesania dessas justaposições não se limita à união de textos e imagens numa proporção onde não é possível distinguir superioridade entre uns e outros. Em livros como "O Mez da Grippe" e "Minha Mãe Morrendo", além da onipresença da morte, o que clama por atenção são os diálogos com outras linguagens. É essa proximidade a celebrada em "Crimes à Moda Antiga", livro que reúne assassinatos escabrosos ocorridos no Brasil e adaptados para as telas entre 1906 e 1930.
Publicadas originalmente em 1978 e 1979 na revista "Atenção", de Curitiba, as narrativas (pela primeira vez reunidas em livro) misturam o tom sensacionalista dos cinedocumentários e do rádio, recuperando na maior parte casos ocorridos numa São Paulo ainda estagiária da sua atual condição de metrópole refém dos muros eletrificados e da violência.
Em 1908 parecia fácil livrar-se de um cadáver: bastava ser proprietário de mala com tamanho condizente à vítima, tomar um navio e jogá-la do convés. Foi assim que Miguel Trad tentou se livrar do corpo do patrão.
Esse crime da mala é um dos poucos no livro ainda a permanecer no imaginário popular brasileiro, talvez por se confundir com outro homicídio envolvendo bagagens, ocorrido 20 anos depois, quando José Pistone matou sua mulher, Maria Féa. Depois de maquiá-la com cuidado, a despachou de navio para um falso endereço na Itália. O corpo mutilado foi descoberto antes de o navio zarpar, e o italiano foi preso.
O caso certamente serve para ilustrar a ingenuidade dos facínoras "românticos" da época. Também é curioso ver a predominância de nomes estrangeiros entre os bandidos, como Rocca e Carletto (os "estranguladores da Fé em Deus"), ou os gângsteres tropicais Kindermann e Papst. Era o auge da imigração no país, e o exotismo de tais nomes incendiava a imaginação brasileira, além de deixar arder os preconceitos.
Um dos principais elementos da ficção de Valêncio é a delimitação precisa de suas narrativas ao espaço-tempo compreendido pela belle époque, o que atribui certo ar anacrônico a seus livros, calcados na memória de eventos históricos, adulterados ou não.
Em tom de teatro Grand Guignol, é constante a presença da morte, da magia, além da amputação dos corpos acompanhando o decepar de textos. Mas a colagem gráfica de extrema originalidade de "O Mez da Grippe" ou "O Minotauro" não está presente em "Crimes à Moda Antiga". O que só aumenta a sua importância, permitindo compreender como o Frankenstein de Curitiba atingiu a fórmula do equilíbrio entre retalhos verbais e visuais para dar vida a seus melhores livros.


Joca Reiners Terron é escritor, publicou "Hotel Hell" (2003) e "Curva de Rio Sujo" (2003), entre outros

Crimes à Moda Antiga
   
Autor: Valêncio Xavier
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 33 (184 págs.)


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