São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2008

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NINA HORTA

Cozer e coser


Como é que um cozinheiro coloca o sol dentro da panela? Como é que um estilista mostra a comemoração?

LINO VILLAVENTURA é um estilista, um costureiro, muito perto do cozinheiro, do pintor, do escultor, do artista que tem sempre olhos de crianças para a vida. Costureiro-cozinheiro-poeta.
Não dá para entender é nada naqueles minutos de passarela. Afinal, o costureiro quer nos dar olhos como os seus, do mesmo modo que nós, os cozinheiros, emprestamos nossa língua.
Quer nos mostrar tudo que viu, as páginas brilhantes dos livros, aquela nuvem dependurada, torta, torta, e mais os rios e os mares, e a beirada das ondas e as palmeiras, e algas e muitos, muitos vaga-lumes.
Mas, falando assim, ele parece um visionário que só vê coisas bonitas de longe, sem se agarrar ao real.
Muito pelo contrário. Tem olhos de lince para as mãos de uma pequena bordadeira, ou de um rapaz que dobra as folhas em origami.
Sua costura é tangível, comível, não é feita só de vento e poeira de estrelas, mas da terra mansa do Ceará. Queremos comer suas telhas de babado com o chá da tarde, sentar embaixo de seus panos para refrescar.
Quase podemos escutar no seu laboratório (como o de Ferran Adrià) as gotas de ouro caindo nas águas do rio.
A natureza humana nunca sai de sua passarela, tem sempre a fragilidade ou a força de um homem ou de uma mulher. Mas, de repente, também há o silêncio. Talvez ele chegue a um ponto na sua arte (que poderia ser a cozinha, a escultura, a pintura) em que há uma quebra, onde nada se fala ou se compara.
Acabam as palavras, e vemos o que o estilista quer mostrar: alegria, festa. Como é que um cozinheiro consegue colocar o sol dentro da panela? Como é que um estilista mostra a comemoração? Às vezes, descrever uma cena é o pior jeito de mostrá-la.
Então, silêncio. Deixa os palhaços passarem.
No último dia do Fashion Show, fomos invadidos pelos olhos, cercados, tomados pelas mulheres do Lino, só fica a emoção, um gosto de Fellini na boca, de circo do tempo de criança. E, como sempre, uma zona de incompreensão, de cegueira, como em toda boa arte que se preze.
Mulheres-clowns saídas de Picasso, Severini, mulheres levitantes, quase seguradas por fios, saltimbancos, bonecas-marionetes, robôs iluminados, bumba-meu-boi sem boi.
Sabe quando a cobra perde a pele? A flor da buganvília seca? O dente-de-leão é assoprado? Asas de borboleta plissadas? A textura dos panos era assim, tipo teia de aranha sem dono, mas obsessivamente trabalhadas em nervuras, aquelas nervuras de palmeira, de palmeira, de palmeira.
O gosto era, primeiro, de vinho frutado, muito vinho derramado, vermelho, embebedando a sala. De manga madura amarela, de orelha de goiaba-menina, do acobreado do caju maduro, sonhos, tão elaborados e cozidos e cosidos, e amarrados e domados, escravos dos corpos das modelos, ondulantes, arrepiados de rendas e tules e sedas e gazes.
Queria tanto saber falar sobre moda, mas não era uma coisa de moda. Assim, na passarela (como a comida é no prato), são emoções e tessituras e cheiros, uma pintura que as palavras têm problema para traduzir, seda pura como musse de mangaba, crepes de limão da China, ganaches com chá verde do Japão.
Sempre digo que Lino Villaventura é um cozinheiro que brinca de costureiro. Desta vez, ele vestiu a festa, trabalhou a cor, a dança, a música, o milagre contínuo da transformação do simples em belo, jogou bola, comeu com as mãos, lambeu os beiços, estourou bexigas, fincou parabólicas nas cabeças das meninas, soltou foguete de são João na véspera do santo. Etéreo, fino, louco.
Hoje tem marmelada? Tem, sim senhor! Hoje tem goiabada? Tem, sim senhor... E o palhaço o que é? É ladrão de muié!
Ficou um gosto e um desejo de sapato de batata-roxa.

ninahorta@uol.com.br


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