São Paulo, sexta, 26 de junho de 1998

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Mísia tira o fado do túmulo do subdesenvolvimento poético


Cantora portuguesa, cujo novo álbum, "Garras dos Sentidos', é lançado no Brasil, representa a renovação da tradicional canção portuguesa, com poesia atual e mais bem trabalhada


RUI NOGUEIRA
em São Paulo

Rico nas vozes (de Amália Rodrigues a Carlos do Carmo), pobre na melodia (sempre espetado em acrobacias vocais) e paupérrimo na temática (raramente escapa do banho-maria nostálgico), o fado está virando uma página a caminho da renovação.
A prova de que está longe de se esgotar como uma das últimas manifestações da canção urbana é o CD "Garras dos Sentidos" da intérprete portuguesa Mísia (lançamento da WEA).
"Garras" trocou o melodrama supérfluo pela poesia que lembra os melhores momentos da MPB (Música Popular Brasileira).
Os versinhos pobres que impressionavam Mísia desde a adolescência, aquelas quadras cantando "um país pequeninho, pobrezinho, queridinho, uma coisa imobilista", deram lugar ao "poema forte, como instrumento principal da canção".
"Não me peças mais canções/Porque a cantar vou sofrendo/Sou como as velas do altar/Que dão luz e vão morrendo", escreveu Antônio Botto em "Não me Chamem pelo Nome". Não é a celebração de uma dor que dá prazer, é o prazer de ouvir isso cantado.
É o fado fugindo do túmulo do subdesenvolvimento poético.
Por encomenda
Para fazer de "Garras" um obra antológica do fado português, Mísia pediu a um grupo de escritores que compusesse especialmente para o CD -Lídia Jorge, com duas músicas, e Agustina Bessa-Luís são surpreendentes. Entre os mortos que "cederam" trabalhos, os destaques óbvios: Fernando Pessoa e Mário Sá-Carneiro.
"Pedi aos escritores que escrevessem quadras e sextilhas e não lhes mostrei as músicas que eu já tinha", revela a intérprete à Folha, de Paris, por telefone, ao falar da ourivesaria que precedeu "Garras".
No lugar da saudade fatalista, sem abrir mão do clima de tragédia, que não pode ser riscado impunemente do fado -tanto quanto a milonga langorosa é parte integrante do tango-, entraram os desafios sentimentais da vida e a teimosia em torno do impossível.
Mas a poesia de Agustina Bessa-Luís, a compositora da canção que dá título ao CD, não tem nada de conformista. Ainda que os "amores" sejam "cavalos corredores/com asas de ferro e chumbo/caídos nas águas fundas", quem resiste às "demências dos olhares", que fazem uma festa "alegre" de prantos?
"Eu quero isso, quero ter muito cuidado com as palavras", diz Mísia que, em setembro próximo, fará uma turnê pelo Brasil. Vai passar por São Paulo, Ribeirão Preto, Rio e Porto Alegre.
Vem tentar plantar aqui uma semente que, para a música, pode significar o mesmo que as muitas vindas de José Saramago fizeram pela literatura -mostrar que Portugal era mais do que Eça de Queirós.
Mísia pode mostrar que o fado não é só Amália Rodrigues, a mais emblemática das intérpretes portuguesas -os muito entendidos citam Fernando Farinha, Tony de Matos, Ermínia Silvas e Maria da Fé. Mas precisam ser entendidos.

Disco: Garras dos Sentidos Artista: Mísia Lançamento: WEA
Quanto: R$ 18, em média


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