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RESENHA DA SEMANA
O sexo absoluto
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Os personagens do inglês
Alan Hollinghurst, 45, vêem sexo em tudo. Até na língua de
um tamanduá em busca de alimento pelos corredores de um
cupinzeiro num desses documentários sobre vida animal
exibidos na TV e transformado
em "filme pornô" pelos olhos
do protagonista de "A Biblioteca da Piscina" ("The Swimming-Pool Library"), primeiro
romance do autor, de 88, agora
lançado no Brasil.
E não poderia ser de outra
forma. São personagens (quase
que exclusivamente homens e
homossexuais) desesperados
em busca de um sentido (como
todo mundo), e para quem o
sexo é a única coisa capaz de
dar nem que seja a ilusão de
uma identidade.
O sexo é a "cor da pele" do
homossexual. Tudo é sexo na
cultura gay. Se não fosse pelo
sexo, ela não teria como se diferenciar do que a cerca. O sexo a
define (ninguém pode ser homossexual sem manifestar a
sua homossexualidade) e por
isso toda observação passa a ser
sexualizada. O sexo é o próprio
princípio de sociabilidade do
universo gay.
A manifestação da identidade
homossexual faz o mundo perder o verniz das aparências para ser só desejo. No fundo, para
qualquer ser humano, tudo é
desejo, mas para os homossexuais a exposição dessa obviedade é a garantia da sua identidade de grupo.
No que tem de mais positivo,
essa cultura expõe a hipocrisia
que separa o substrato do sexo
da superfície das aparências,
levando ao primeiro plano o
que o resto do mundo tenta
dissimular sob as convenções
do dia-a-dia. No que tem de
mais trágico, ela expõe a precariedade das identidades em geral, ao associar identidade ao
sexo, à materialidade perecível
do corpo.
O curioso nos livros de Hollinghurst é que essa hipersexualização é combinada a uma
espécie de classicismo inglês.
Como se o próprio texto se tornasse um tanto eduardiano (relativo ao reinado de Eduardo
7º, de 1901 a 1910) ao cultuar a
herança de uma tradição inglesa típica do universo de colégios de meninos e do imaginário exótico das administrações
coloniais. A única diferença é
que, onde essa tradição deixava
a homossexualidade implícita,
Hollinghurst a explicita.
O negócio de Hollinghurst,
eleito um dos melhores jovens
romancistas ingleses pela revista "Granta" em 93, é uma
descrição psicológica minuciosa (clássica) dos sentimentos
provocados pelo desejo. Seus
livros seguem muitas das regras e produzem os mesmos
efeitos e atração de uma literatura em geral considerada de
quinta e vendida em sex shops,
uma espécie de "soft porn, só
que "com estilo'" -e isso sobretudo em seu terceiro romance, "The Spell", publicado
no ano passado na Inglaterra e
que acaba de sair nos EUA.
"A Biblioteca da Piscina" é
um texto sobre a decadência física, a perda da juventude e da
beleza, a morte e o reconhecimento melancólico da repetição. A velhice e a senilidade assombram todo o livro -decorrência previsível num universo
onde impera a idolatria do corpo e do sexo.
O jovem protagonista socorre
um velho que sofre um ataque
cardíaco à noite num banheiro
público onde ambos estão à cata de companhia. Semanas
mais tarde, os dois se reencontram na piscina de um clube
masculino no centro de Londres. O velho, na realidade um
lorde com um passado surpreendente, procura alguém
para escrever suas memórias e
faz a proposta ao rapaz.
Por uma série de coincidências que o relato do velho lorde
revela, o protagonista no auge
de sua juventude e vida sexual
vai acabar descobrindo não só
a verdadeira razão por trás daquela proposta, mas que tudo
talvez não passe de pura repetição: que os homens são sempre
os mesmos, que suas histórias e
seus desejos se repetem. Vê na
figura decadente do lorde o seu
próprio futuro.
A melancolia dessa descoberta se reforça ainda mais em
"The Spell" (o encanto), em
que quatro ingleses, todos gays,
sofrem a atração e a sedução
uns dos outros (e de muitos
mais), num frenesi sexual insaciável, para terminarem desiludidos, mas bucólicos diante de
uma natureza romântica, como
se fossem personagens de Jane
Austen.
"A voz de Hollinghurst, tremeluzindo entre êxtase e lamento, fala de uma esfera da
qual está excluída a maioria
dos seres humanos", escreveu
John Updike na "The New Yorker", sobre "The Spell". O que
talvez ele não tenha percebido é
que essa cultura homossexual,
ao expor, na sua particularidade de um culto radicalizado ao
sexo, a fragilidade das identidades, torna-se uma das representações metonímicas mais
contundentes da totalidade da
condição humana.
Avaliação:
Livros: A Biblioteca da Piscina e The
Spell
Autor: Allan Hollinghurst
Tradução: Rubens Figueiredo (A
Biblioteca da Piscina)
Lançamentos: Record e Viking
(respectivamente)
Quanto: R$ 40 (462 págs.) e US$ 24,95
(256 págs.)
Onde encomendar: (The Spell)
www.bn.com, www.amazon.com,
www.wordsworth.com etc.
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