São Paulo, Sábado, 26 de Junho de 1999
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RESENHA DA SEMANA
O sexo absoluto

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Os personagens do inglês Alan Hollinghurst, 45, vêem sexo em tudo. Até na língua de um tamanduá em busca de alimento pelos corredores de um cupinzeiro num desses documentários sobre vida animal exibidos na TV e transformado em "filme pornô" pelos olhos do protagonista de "A Biblioteca da Piscina" ("The Swimming-Pool Library"), primeiro romance do autor, de 88, agora lançado no Brasil.
E não poderia ser de outra forma. São personagens (quase que exclusivamente homens e homossexuais) desesperados em busca de um sentido (como todo mundo), e para quem o sexo é a única coisa capaz de dar nem que seja a ilusão de uma identidade.
O sexo é a "cor da pele" do homossexual. Tudo é sexo na cultura gay. Se não fosse pelo sexo, ela não teria como se diferenciar do que a cerca. O sexo a define (ninguém pode ser homossexual sem manifestar a sua homossexualidade) e por isso toda observação passa a ser sexualizada. O sexo é o próprio princípio de sociabilidade do universo gay.
A manifestação da identidade homossexual faz o mundo perder o verniz das aparências para ser só desejo. No fundo, para qualquer ser humano, tudo é desejo, mas para os homossexuais a exposição dessa obviedade é a garantia da sua identidade de grupo.
No que tem de mais positivo, essa cultura expõe a hipocrisia que separa o substrato do sexo da superfície das aparências, levando ao primeiro plano o que o resto do mundo tenta dissimular sob as convenções do dia-a-dia. No que tem de mais trágico, ela expõe a precariedade das identidades em geral, ao associar identidade ao sexo, à materialidade perecível do corpo.
O curioso nos livros de Hollinghurst é que essa hipersexualização é combinada a uma espécie de classicismo inglês. Como se o próprio texto se tornasse um tanto eduardiano (relativo ao reinado de Eduardo 7º, de 1901 a 1910) ao cultuar a herança de uma tradição inglesa típica do universo de colégios de meninos e do imaginário exótico das administrações coloniais. A única diferença é que, onde essa tradição deixava a homossexualidade implícita, Hollinghurst a explicita.
O negócio de Hollinghurst, eleito um dos melhores jovens romancistas ingleses pela revista "Granta" em 93, é uma descrição psicológica minuciosa (clássica) dos sentimentos provocados pelo desejo. Seus livros seguem muitas das regras e produzem os mesmos efeitos e atração de uma literatura em geral considerada de quinta e vendida em sex shops, uma espécie de "soft porn, só que "com estilo'" -e isso sobretudo em seu terceiro romance, "The Spell", publicado no ano passado na Inglaterra e que acaba de sair nos EUA.
"A Biblioteca da Piscina" é um texto sobre a decadência física, a perda da juventude e da beleza, a morte e o reconhecimento melancólico da repetição. A velhice e a senilidade assombram todo o livro -decorrência previsível num universo onde impera a idolatria do corpo e do sexo.
O jovem protagonista socorre um velho que sofre um ataque cardíaco à noite num banheiro público onde ambos estão à cata de companhia. Semanas mais tarde, os dois se reencontram na piscina de um clube masculino no centro de Londres. O velho, na realidade um lorde com um passado surpreendente, procura alguém para escrever suas memórias e faz a proposta ao rapaz.
Por uma série de coincidências que o relato do velho lorde revela, o protagonista no auge de sua juventude e vida sexual vai acabar descobrindo não só a verdadeira razão por trás daquela proposta, mas que tudo talvez não passe de pura repetição: que os homens são sempre os mesmos, que suas histórias e seus desejos se repetem. Vê na figura decadente do lorde o seu próprio futuro.
A melancolia dessa descoberta se reforça ainda mais em "The Spell" (o encanto), em que quatro ingleses, todos gays, sofrem a atração e a sedução uns dos outros (e de muitos mais), num frenesi sexual insaciável, para terminarem desiludidos, mas bucólicos diante de uma natureza romântica, como se fossem personagens de Jane Austen.
"A voz de Hollinghurst, tremeluzindo entre êxtase e lamento, fala de uma esfera da qual está excluída a maioria dos seres humanos", escreveu John Updike na "The New Yorker", sobre "The Spell". O que talvez ele não tenha percebido é que essa cultura homossexual, ao expor, na sua particularidade de um culto radicalizado ao sexo, a fragilidade das identidades, torna-se uma das representações metonímicas mais contundentes da totalidade da condição humana.


Avaliação:    


Livros: A Biblioteca da Piscina e The Spell Autor: Allan Hollinghurst Tradução: Rubens Figueiredo (A Biblioteca da Piscina) Lançamentos: Record e Viking (respectivamente) Quanto: R$ 40 (462 págs.) e US$ 24,95 (256 págs.) Onde encomendar: (The Spell) www.bn.com, www.amazon.com, www.wordsworth.com etc.

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