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São Paulo, sábado, 26 de julho de 2003

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A literatura brasileira dividida por quatro

Fabiana Beltramin/Folha Imagem
Os escritores Bernardo Carvalho (à esq.) e Luiz Ruffato observam Milton Hatoum e Marçal Aquino, em frente a obra de Renata Tassinari



Folha reúne quatro dos principais autores nacionais, todos convidados da Festa de Parati, para debater a ficção feita no país

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Marçal Aquino, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum e Luiz Ruffato são quatro escritores brasileiros. Todos nascidos na mesma sesmaria de tempo, saíram cada um de um Estado do país para desaguarem em São Paulo.
Em carreiras que deslancharam entre o final dos anos 80 e final dos 90, o quarteto conseguiu prêmios, elogios de críticos e traduções para outros idiomas.
Aquino, Carvalho, Hatoum e Ruffato nunca tinham parado para conversar uns com os outros.
Quatro dos convidados brasileiros da primeira edição da Festa Literária Internacional de Parati, a Flip, que acontece de sexta-feira até domingo, na cidade colonial fluminense, eles foram reunidos pela Folha, no Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, com a "rara oportunidade", como definiu Aquino, "de conversar sobre a literatura brasileira de hoje".
Em bate-papo informal, pontuados com risos e fagulhas, os romancistas falaram sobre a relação da ficção nacional com a realidade violenta, discutiram o tamanho diminuto (mas crescente) do mercado editorial, debateram as estratégias dos autores da chamada "geração 90".
Leia trechos a seguir de uma conversa que deve continuar na próxima semana em Parati.

Folha - A escritora Patrícia Melo diz que uma das marcas comuns da literatura brasileira de hoje é o desespero. Vocês concordam?
Milton Hatoum -
Acho que não é só o desespero que move a literatura. O que move é a inquietação de cada um, os fantasmas de cada um, aquilo que pode se traduzir em drama humano.
Marçal Aquino - Mas o desespero é um tempero importante.
Hatoum - É, mas às vezes o desespero leva a uma espera. O fim de "Vidas Secas" [de Graciliano Ramos] contém esperança.
Aquino - Em "São Bernardo" [também de G. Ramos] não há.
Hatoum - O desespero pode ser uma tábua, uma trama, um recurso. Quer dizer, não sou muito aparelhado para falar sobre esperança, porque no que escrevi...
Luiz Ruffato - Existe isso que o Milton falou, a busca por questões pessoais e a realidade à sua volta. Todo tipo de literatura reflete em algum grau a inserção desse indivíduo nessa realidade. Com certeza a visão desesperançada é uma característica da literatura como um todo. Não há muita saída para isso. A realidade sempre sufoca.
Bernardo Carvalho - Você falou algo de que discordo. Um dos problemas da literatura brasileira hoje é essa submissão à realidade. O interessante, independentemente do seu desespero, é você tentar vencê-lo. Se você for submisso à realidade não precisa nem escrever. Quando se escreve é por que se acredita em algo. Acho que há uma espécie de volta ao naturalismo na literatura brasileira que é uma submissão a essa idéia de que a realidade determina o que a realidade é.
Ruffato - Estamos de acordo.
Carvalho - Justamente pela literatura estar sendo feita já está resistindo ao desespero.
Ruffato - Uma coisa é como a realidade se sobrepõe às questões individuais. Outra é quando ela sufoca e você está colocando a cabeça para fora. Uma coisa que eu chamarei de mimética, que é quase jornalística, que se faz muito, e que acho um horror. Outra coisa é a reflexão sobre essa realidade.

Folha - O que vocês acham da idéia da literatura brasileira estar muito submissa à realidade?
Aquino -
Existe uma literatura que está, a rigor, muito próxima do jornalismo, que é quase o registro in natura da ocorrência cotidiana. Tem outra que só parte da realidade, o que é maravilhoso. Não se pode ter a pretensão de apreender a realidade, você parte dela para criar. A realidade é sempre mais brutal do que qualquer ficção enlouquecida.
No meu caso a realidade está muito próxima do meu texto, é um caminho que escolhi, é até uma limitação minha. Mas até pela prática do jornalismo percebi que querer transportar a realidade de forma direta sem o filtro da ficção soa artificial.

Folha - Saindo do desespero e da relação com a realidade, gostaria de saber que traços vocês enxergam em comum entre o que é feito hoje na literatura brasileira?
Aquino -
A tentativa de vislumbrar a coisa como um recorte, caso das coletâneas "Geração 90", acho que é bastante discutível. O maior mérito desse tipo de reunião é fazer um mapeamento da produção de algum momento, a discussão sobre se é ou não geração é conversa fiada. Mas o recorte que o Nelson de Oliveira (organizador da "Geração 90", leia sobre ela à pág. E3) faz mostra uma característica, a pluralidade de discursos. Faz muito tempo que a literatura brasileira não tem uma riqueza tão grande de abordagens. Não senti isso na década de 80. Os discursos são muito diferentes, aqui mesmo nessa sala.

Folha - Vocês concordam?
Hatoum -
Não acredito em literatura geracional. O tempo vai dizer qual texto sobrevive.
Carvalho - A diversidade sempre existiu, em qualquer época. O que é curioso e até perigoso é uma militância que não tem a ver com a literatura, mas com a visibilidade, um traço normal de militância de minorias. Se você pegar essas pessoas, elas não têm nenhuma questão em comum. Não é como a nouvelle vague, um grupo que fez um manifesto, iniciou um movimento. Aqui é uma militância para criar espaço no mercado. O perigo da impostura nisso é grande. Você junta alhos com bugalhos, como se fosse propaganda.


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