São Paulo, sábado, 26 de agosto de 2000


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RESENHA DA SEMANA
O amigo morto

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Os ensaios do argentino Julio Cortázar (1914-84) sobre o conto costumam ser referência para quem procura definir o gênero. Daí que seus contos também sejam tomados inversa e naturalmente como ilustrações do que o escritor expõe em seus ensaios. "Octaedro", de 1964, agora relançado pela Civilização Brasileira, é exemplar nesse sentido.
Um ano antes da publicação dessa coletânea, Cortázar escreveu um célebre texto ("Alguns Aspectos do Conto") em que dizia: "Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta".
Num outro ensaio ("Do Conto Breve e Seus Arredores"), de 69, o escritor, ao buscar as diferenças entre a prosa e a poesia, chegava à seguinte conclusão: "A gênese do conto e do poema é, contudo, a mesma, nasce de um repentino estranhamento, de um deslocar-se que altera o regime "normal" da consciência; num tempo em que as etiquetas e os gêneros cedem a uma estrepitosa bancarrota, não é inútil insistir nesta afinidade que muitos acharão fantasiosa. Minha experiência me diz que, de algum modo, um conto breve como os que procurei caracterizar não tem uma estrutura de prosa".
Pelo menos três entre os oito contos reunidos em "Octaedro" confirmam ou anunciam, de uma maneira rigorosa, as idéias propostas pelo autor, quebrando os limites do gênero para afirmar uma forma que, a um só tempo elegíaca e narrativa, poderia ser definida, na falta de termo mais preciso, como poesia em prosa.
Em "Liliana Chorando", "Aí, Mas Onde, Como" e "Manuscrito Achado num Bolso", vida e morte se confundem como extremos de um mesmo ciclo. No primeiro conto, um homem imagina a própria morte e o que restará depois dela, imagina o que os vivos farão quando ele já não estiver mais presente, a vida que não poderá testemunhar: "Liliana chorando era o término, a extremidade de onde ia começar outra maneira de viver".
"Aí, Mas Onde, Como" fala do imponderável que leva o autor do conto a escrevê-lo, a falar em permanência de um amigo morto 30 anos antes, por saber que ele continua vivo -não na sua lembrança, mas em algum lugar inexplicável- para sempre sofrendo e prestes a morrer: "Qualquer pessoa sonha com seus mortos e os vê vivos, não é por causa disso que escrevo; se escrevo, é porque sei, embora não possa explicar o que sei".
Em "Manuscrito Achado num Bolso", esse ciclo sem fim de vida e morte é representado por uma parábola do desejo como jogo que não evolui, mas tem de se interromper para recomeçar sempre. Um homem tem encontros casuais com mulheres nos vagões do metrô parisiense e, antes que a relação se cristalize, lhes revela e propõe seu jogo romanesco: os dois amantes voltam a se perder no metrô, como desconhecidos, para tentar se reencontrar um dia, com o auxílio do acaso, num vagão qualquer.
Os três contos representam também uma alegoria da literatura, pela ânsia do narrador de dar à vida um sentido romanesco, de testemunhar a vida que continua para além da sua morte, nesse jogo incessante do desejo, nem que seja morrendo para renascer, para sempre e num lugar inexplicável e desconhecido, na imaginação.
Os contos "Verão" e "As Fases de Severo" mostram uma filiação ao chamado realismo mágico, embora o fantástico de Cortázar ("olhando o que ainda não sabemos ver") esteja mais próximo do mal-estar dos contos de Poe do que do exotismo latino-americano. "Lugar chamado Kindberg" e "Pescoço de Gatinho Preto" narram ainda o desejo em encontros fortuitos nas estradas e no metrô. E "Os Passos no Rastro" completa a reflexão do escritor sobre a literatura, por meio do equívoco de uma biografia literária.
O que há de comum em todos é a integridade e a determinação de um autor de encontrar, para além da "pequena e às vezes miserável história que conta", alguma coisa que, como o amigo morto, está aí, mas não se sabe bem onde nem como, e que ainda não sabemos ver.


Octaedro
Octaedro
     Autor: Julio Cortázar Tradução: Gloria Rodríguez Editora: Civilização Brasileira Quanto: R$ 19 (125 págs.)




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