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RESENHA DA SEMANA
O amigo morto
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Os ensaios do argentino
Julio Cortázar (1914-84)
sobre o conto costumam ser referência para quem procura definir o gênero. Daí que seus contos também sejam tomados inversa e naturalmente como ilustrações do que o escritor expõe
em seus ensaios. "Octaedro", de
1964, agora relançado pela Civilização Brasileira, é exemplar
nesse sentido.
Um ano antes da publicação
dessa coletânea, Cortázar escreveu um célebre texto ("Alguns
Aspectos do Conto") em que dizia: "Um conto é significativo
quando quebra seus próprios limites com essa explosão de
energia espiritual que ilumina
bruscamente algo que vai muito
além da pequena e às vezes miserável história que conta".
Num outro ensaio ("Do Conto
Breve e Seus Arredores"), de 69,
o escritor, ao buscar as diferenças entre a prosa e a poesia, chegava à seguinte conclusão: "A
gênese do conto e do poema é,
contudo, a mesma, nasce de um
repentino estranhamento, de
um deslocar-se que altera o regime "normal" da consciência;
num tempo em que as etiquetas
e os gêneros cedem a uma estrepitosa bancarrota, não é inútil
insistir nesta afinidade que muitos acharão fantasiosa. Minha
experiência me diz que, de algum modo, um conto breve como os que procurei caracterizar
não tem uma estrutura de prosa".
Pelo menos três entre os oito
contos reunidos em "Octaedro"
confirmam ou anunciam, de
uma maneira rigorosa, as idéias
propostas pelo autor, quebrando os limites do gênero para
afirmar uma forma que, a um só
tempo elegíaca e narrativa, poderia ser definida, na falta de termo mais preciso, como poesia
em prosa.
Em "Liliana Chorando", "Aí,
Mas Onde, Como" e "Manuscrito Achado num Bolso", vida e
morte se confundem como extremos de um mesmo ciclo. No
primeiro conto, um homem
imagina a própria morte e o que
restará depois dela, imagina o
que os vivos farão quando ele já
não estiver mais presente, a vida
que não poderá testemunhar:
"Liliana chorando era o término, a extremidade de onde ia começar outra maneira de viver".
"Aí, Mas Onde, Como" fala do
imponderável que leva o autor
do conto a escrevê-lo, a falar em
permanência de um amigo
morto 30 anos antes, por saber
que ele continua vivo -não na
sua lembrança, mas em algum
lugar inexplicável- para sempre sofrendo e prestes a morrer:
"Qualquer pessoa sonha com
seus mortos e os vê vivos, não é
por causa disso que escrevo; se
escrevo, é porque sei, embora
não possa explicar o que sei".
Em "Manuscrito Achado num
Bolso", esse ciclo sem fim de vida e morte é representado por
uma parábola do desejo como
jogo que não evolui, mas tem de
se interromper para recomeçar
sempre. Um homem tem encontros casuais com mulheres
nos vagões do metrô parisiense
e, antes que a relação se cristalize, lhes revela e propõe seu jogo
romanesco: os dois amantes
voltam a se perder no metrô, como desconhecidos, para tentar
se reencontrar um dia, com o
auxílio do acaso, num vagão
qualquer.
Os três contos representam
também uma alegoria da literatura, pela ânsia do narrador de
dar à vida um sentido romanesco, de testemunhar a vida que
continua para além da sua morte, nesse jogo incessante do desejo, nem que seja morrendo para renascer, para sempre e num
lugar inexplicável e desconhecido, na imaginação.
Os contos "Verão" e "As Fases
de Severo" mostram uma filiação ao chamado realismo mágico, embora o fantástico de Cortázar ("olhando o que ainda não
sabemos ver") esteja mais próximo do mal-estar dos contos de
Poe do que do exotismo latino-americano. "Lugar chamado
Kindberg" e "Pescoço de Gatinho Preto" narram ainda o desejo em encontros fortuitos nas
estradas e no metrô. E "Os Passos no Rastro" completa a reflexão do escritor sobre a literatura, por meio do equívoco de
uma biografia literária.
O que há de comum em todos
é a integridade e a determinação
de um autor de encontrar, para
além da "pequena e às vezes miserável história que conta", alguma coisa que, como o amigo
morto, está aí, mas não se sabe
bem onde nem como, e que ainda não sabemos ver.
Octaedro
Octaedro
Autor: Julio Cortázar
Tradução: Gloria Rodríguez
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 19 (125 págs.)
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