São Paulo, sábado, 26 de agosto de 2006

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análise

Obras refletem mundo feliz e engraçado

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Uma boa resposta para o comentário "mas meu filho de quatro anos também sabe fazer isso!" -ainda surpreendentemente comum diante de obras como as de Calder, Miró ou Picasso- pode ser, sem hesitação, "sim". Mas nós não sabemos mais. É preciso muita maturidade estética, reflexão e trabalho construtivo para atingir a gratuidade da ação infantil. Muito ao contrário da crítica que Clement Greenberg faz ao hedonismo de Calder, à sua "arte desanuviada", crítica freqüente às obras de arte que cometam a grave falta de expressar alegria, os móbiles de Calder, embora prazerosos e lúdicos, não são meramente intuitivos.
O livro de Roberta Saraiva, "Calder no Brasil", publicado simultaneamente à exposição na Pinacoteca do Estado, mostra esses dois lados da interpretação sobre o trabalho do artista: o decorativo e o revolucionário, a partir de uma coletânea importante de textos sobre a obra de Calder, incluindo ensaios de Mario Pedrosa, Jean Paul-Sartre, Henrique Mindlin, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade e um trecho da autobiografia do próprio artista americano, além de textos da autora que contextualizam e esclarecem os diferentes momentos de seu trabalho.
Hedonista e gratuito, aliás, dois termos utilizados com freqüência para diminuir o valor e a função de uma obra de arte, são acepções que precisam ser revisitadas, o que o livro também ensina.
Nem o prazer se antepõe ao pensamento nem a gratuidade ao trabalho. Como aponta Sartre, ao dizer que "seus móbiles não significam nada; eles são, e isso é tudo", ou Mario Pedrosa, quando diz que o trabalho de Calder é como a "grande natureza, que esbanja pólen e da qual não se sabe se ela é o encadeamento cego das causas e dos efeitos ou o desdobramento tímido, retardado e perturbado de uma idéia", a gratuidade talvez seja um momento nobre do engenho humano: um momento de graça e da graça. Sem preço e sem necessidade. Como percebeu a filha de dois anos de Sabino, ao visitar o estúdio desorganizado de Calder e perguntar: "É aqui que mora o Papai Noel?".
Sim, é aqui. É aqui, como no mundo desnecessário da fantasia, que se integram o "mundano e o profundo, o generoso e o cambiante móbile", onde o "espaço se torna um lugar maleável" e passa a ser matéria de escultura, além e junto dos próprios materiais formais: o arame, o ferro, o bronze. É aqui que, além do espaço, o tempo também se torna pensamento espacial, quando vemos como é cambiante e móvel o objeto, como se põe em suspensão, "como uma vela tensa à espera dos grandes ventos marinhos".
Ao contrário do "obrigado" da língua portuguesa, que estabelece uma relação de compra e venda entre dois sujeitos, em que um se coloca numa relação de obrigação em respeito ao outro, cabe aqui muito mais o "gracias" do espanhol. Entre a obra e o espectador dos objetos de Calder, não existe obrigação. Há a idéia de um mundo feliz, engraçado e gratuito, que se oferece ao espectador por nada, para nada.


CALDER NO BRASIL
Organização:
Roberta Saraiva
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 85 (288 págs.)


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