São Paulo, quinta-feira, 26 de setembro de 2002

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GASTRONOMIA

Um restaurante sem fogão, acredite se quiser

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Todo mundo que é muito ligado em comida só fala em frescores, frescuras, peixe recém-pescado, frutas com a folha ainda grudada no galho. Muitas vezes nos esquecemos do outro lado da lua. O da despensa. O das conservas.
Pois Amanda Hesser, crítica de restaurantes americana, depois de um lauto almoço em Barcelona, tira sua caderneta de endereços do bolso e resolve arriscar um bar de tapas, o Quimet & Quimet.
A indicação vinha do seu quitandeiro predileto, e Amanda , como toda cronista, estava mais esfaimada por assuntos do que pela comida propriamente dita. E este bar era um assunto controverso. Palpitante. Só servia coisas em lata.
Foi seguindo as informações e chegou a uma Pizza Hut muito bem iluminada de néon, banhada de luz fluorescente e, logo junto, um barzinho que quase estourava de gente, calçada cheia. Entrou com dificuldade e deu com a bancada onde trabalhavam Joaquin e Joana Perez, herdeiros do minilugar, que já existe ali mesmo desde 1914.
Nas prateleiras, nas mesas, no mármore das bancadas, latas, latinhas e latões de todos os feitios, vidros grossos e finos, garrafas e nenhum fogão à vista. Nada, absolutamente nada, era fresco. Lulas tenras e brancas, caviar, barriga de atum, alcachofras do tamanho de uma unha, presuntos, defumados, ovas, foie gras, anchovas dessalgadas, mariscos, caviar.
Os dois irmãos simplesmente escolhem o que há de melhor no mundo inteiro em matéria de conservas e elaboram suas tapas, como grandes chefs, misturando os sabores com critério. A jornalista conseguiu se fazer entendida apontando para os pratos das pessoas sentadas em mesas e logo experimentou um pedaço de terrine de cabeça de porco, que vinha num prato acompanhada por um figo cristalizado e um marron, e fatias grossas de cogumelos porcini, italianos. Tudo salpicado com um vinagre de vinho branco, um vinagre balsâmico de Modena e água de flor de laranjeira. A terrine desmanchava na boca e os acompanhamentos lhe iam às mil maravilhas. E Joaquin e Joana, só de abridor nas mãos, abridor de lata, saca-rolhas, línguas de metal a serem puxadas à comanda. Um restaurante sem fogão, que bênção.
A crítica Amanda arrependeu-se totalmente do almoço escandaloso de dez pratos de degustação. Teve desejos de um canapé de salmão defumado com mel trufado, mas não aguentou mais, só arriscou a sobremesa. Uma torradinha redonda com coalhada cremosa por cima e chocolate belga. Uma noz cristalizada e uns salpicos de azeite de nozes e de brandy.
Voltou ao hotel bem triste e, ao voar para casa, queria compartilhar com alguém sua descoberta, alguém que também adorasse novidades. O primeiro amigo que lhe veio à cabeça foi Jeffrey Steingarten, o homem que comia de tudo.
Chegou e telefonou.
- Tenho uma novidade para você.
- Conte logo.
- Só conto se você jurar que não escreve sobre o assunto antes de mim.
- Uhmm, prometo.
Cumpriu a promessa. Só que, exagerado que é, se mandou imediatamente para Barcelona e visitou todos os bares possíveis de tapas. Passou pelo assunto como um trator, extraiu o tutano, ficou o maior "expert" em tapas, suas origens, sua história. Comeu de tudo, como de costume.
O único agradecimento que fez à amiga foi publicar as receitas que ela havia comido lá e que não conseguira replicar em casa. Estão na edição de setembro da "Vogue" americana (nas bancas).
Neste assunto, sou a mulher mais feliz do mundo. Tenho um amigo e concorrente de peso, que vai a Paris e me surpreende com os mais delicados pacotes que chegam pelo correio. Não dá para acreditar. Melhor que a Amazon. Tem biscoitinhos cor-de-rosa de Reims, sardinhas milesimés da Albert Ménés, fígados de bacalhau defumados da Dinamarca, caprichos dos deuses que são nozes "enrobés" em gianduia, calissons d'Aix, hóstias com amêndoas, caramelos levemente salgadinhos, marrons glacés... É a felicidade enlatada, melhor que o Quimet & Quimet, um momento de alegre lambança, em casa, sem precisar me deslocar até Barcelona. Serviço:
- Quimet & Quimet, Poeta Cabanyes, 25 (tel. 00/xx/34/93-442-3142)
- Ser amiga do Charlô Whately

ninahort@uol.com.br



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