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São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 2003

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ARTIGO

Último ato do poeta foi prelúdio da resistência chilena

ARIEL DORFMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Naquele 26 de setembro de 1973 em que enterraram Pablo Neruda eu vivia em Santiago do Chile, a poucos quilômetros do Cemitério Geral, e nada teria sido mais fácil para mim do que acompanhar o grande poeta em sua derradeira viagem. Mas não o fiz: não assisti ao funeral do homem que, mais do que qualquer outro, me iniciou no amor ao Chile. É uma das poucas coisas na vida das quais me arrependo.
Quando cheguei ao Chile, em 1954, vindo dos EUA, aos 12 anos, não tinha ouvido falar de Neruda. Nos dez anos seguintes Neruda iria infiltrar-se em minha vida. Meu primeiro encontro com ele se deu aos 14 anos. Ardendo de paixão por uma adolescente, fui aconselhado por um colega a sussurrar palavras bem escolhidas no ouvido da beldade.
Minha interpretação deve ter sido tão deplorável quanto meu sotaque, pois ela me respondeu: "Neruda! "Vinte Poemas de Amor". Você é o quinto aprendiz de poeta que o recita para mim em um mês. Por que não aprende melhor "Uma Canção Desesperada'?". Eu era tão ignorante que nem sequer sabia que ela se referia a outro poema de Neruda.
O que ficou claro é que era imprescindível que mergulhasse no repertório nerudiano, coisa que fiz com "Os Versos do Capitão".
Neruda seria meu guia na busca por expressão emocional, intelectual e literária. Quando precisava me entender com meu turbilhão existencial, ali estava "Residência na Terra". E quando tinha que nomear a América Nossa à qual eu aderia, ali estavam o ""Canto Geral" e "Alturas de Machu Picchu", com toda a furiosa história da América Latina.
E quando era questão de discernir as palavras para articular o que significava banhar-se no mar vulcânico, era Neruda, em suas "Odas Elementales", que entreabria as janelas coloquiais da linguagem. A política, o molho de peixe, os heróis, os prostíbulos, os ditadores -tudo o que se quisesse saber, lá estava Neruda com sua libertinagem de palavras, a maioria delas beirando a perfeição.
E agora estava morto o artífice de meu olhar, e eu ia faltar a seu enterro. Neruda tinha morrido de câncer, mas também de tristeza -a angústia que lhe causou o golpe de 11 de setembro de 1973, a morte de Salvador Allende e de amigos fuzilados, a devastação dos ideais de justiça social.
Um clima de medo se abatia sobre o Chile, silenciando a esperança. Foi esse medo que me impediu de assistir ao funeral. Eu já estava na clandestinidade -e dizia a mim mesmo que seria burrice ir a um funeral repleto de soldados.
Amigos me contaram que, no início, a multidão estava muda e que, de repente, gritaram: "Companheiro Pablo Neruda!" E centenas de vozes entoaram a resposta: "Presente!". E as tropas não souberam como reagir. A mesma voz voltou -era a do romancista Francisco Coloane-, e agora rugiu: "Companheiro Salvador Allende!", exigindo o reconhecimento do presidente que tinha sido enterrado duas semanas antes, de forma secreta. "Presente!" foi o grito daqueles que teriam que chorar uma dor ainda maior nos 17 anos de ditadura seguintes.
Neruda deve ter sorrido. Deve ter sido uma reivindicação sua perceber que seu corpo se transformava na mecha que acenderia a resistência, que aquele enterro acabou sendo a primeira tentativa de resgatar os espaços proibidos. E foi simbólico que esse desafio surgisse na despedida a um trabalhador das palavras.
Era apropriado que fossem pessoas que, como eu, tinham sido nutridas por Neruda, era justo que fossem elas as primeiras a anunciar que seu bardo não as havia abandonado, as primeiras a jurar que o manteriam vivo. E creio que Neruda teria desejado que seu último ato se transformasse em prelúdio ou antecipação de algo melhor, a profecia daquele dia em que o planeta seria digno dos poemas que ele nos ofereceu com tanta generosidade e que ainda ressoam e perduram mais além de nossa morte e de sua própria morte insignificante e transitória.


Ariel Dorfman, 61, é escritor chileno, autor de "A Morte e a Donzela" e "O Longo Adeus a Pinochet", entre outros

Tradução de Clara Allain


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