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CARLOS HEITOR CONY
A noite de um dia difícil
A massa foi reunida de muitas maneiras. Havia crescente motivação popular em torno das reformas. Mas alguns órgãos federais e paraestatais contribuíram com gasolina e viaturas, além de volumoso contingente humano. Carlos Lacerda, governador da Guanabara, tentou
esvaziar o comício decretando feriado estadual. Esticou o fim de
semana, pois o dia 13 de março de
1964 era uma sexta-feira. O feriado, chuvoso, não tirou muita gente da cidade e acabou engrossando o comício, que teve vários oradores sem importância, mas importantes presenças: os ministros
militares, inclusive o general Jair
Dantas Ribeiro, que havia garantido, horas antes, a um general
que ninguém conhecia, mas que
se chamava Artur da Costa e Silva, que não compareceria a um
"comício de pelegos".
Miguel Arraes, governador de
Pernambuco, deslocara-se de Recife e era a figura de destaque na
primeira fila das autoridades.
Leonel Brizola chegara a ameaçar a sua ausência, brigava frequentemente com o cunhado presidencial. Acabou indo ao comício, pretendia "dizer algumas verdades" a Jango, diante do povo.
-"É a Revolução!" -pensaram alguns teóricos da esquerda.
Tantas e tamanhas reformas, em
conjunto, equivaliam a uma
transformação global da sociedade, que só seria possível por meio
de um movimento armado que
desalojasse privilégios e instaurasse uma normalidade nova.
- "É a Revolução!" -pensaram alguns militares, que haviam
sido alertados para os intentos
atribuídos a Goulart, um governo
à Perón, através de uma República Sindicalista, com as forças armadas transformadas em milícias partidárias.
-"É uma loucura!" -disse
Juscelino Kubitschek, bem distante da Central do Brasil, na fazenda de um amigo, em Sete Lagoas.
Para JK, o comício tinha sido um
erro e uma tolice. Jango deixara
de ser presidente da República
para ser apenas um presidente de
partido que ambicionava o poder. "Ele passou dos limites! Saiu
da legalidade! E a legalidade o
sustinha. Vou romper com ele,
publicamente. Vou prejudicar
minha própria candidatura, mas
não me interessa o apoio de Jango
nesses termos."
Em Ipanema, na rua Nascimento Silva, um general desconhecido perdeu o sono depois de
ouvir o comício pelo rádio. Chefe
do Estado-Maior das Forças Armadas, o general Humberto de
Alencar Castello Branco acompanhava os movimentos políticos,
mas o fazia com a cautela que um
dos seus amigos, o coronel Vernon A. Walters, adido militar da
Embaixada dos Estados Unidos,
considerava "digna de um membro de Estado-Maior". Alguns
militares, inclusive os detonadores da rebelião, achavam que tanta cautela era apenas a clássica
posição de "ficar em cima do muro" para ver no que iam dar as
coisas. De qualquer forma, era
um militar inteligente e, para os
padrões de sua profissão, culto e
cultivado.
Depois do comício, Castello começou a esboçar um texto que seria transformado, em 20 de março, em Instrução Reservada dirigida aos "Exmos. Srs. Generais e
demais militares do Estado-Maior do Exército e das Organizações Subordinadas". Não era,
ainda, um apelo ao rompimento
definitivo com o governo. Mas era
um sintoma que tinha, entre outros destaques, o de justificar, na
prática, o adjetivo encontradiço
em pronunciamentos desse tipo:
"indormido".
Indormido, Castello Branco
gastou parte da noite na redação
do documento, que é sucinto e,
como diria o General Mourão Filho em suas memórias, "não chovia nem molhava".
Ao Laranjeiras, João Goulart
chegou esbodegado pelo cansaço
e pelas emoções do comício. Vestiu o pijama e declarou à mulher:
"Estou pregado!". E dormiu.
O fim de março se aproximava.
A última semana do mês seria de
recesso: a Páscoa cairia no dia 29.
A partir do dia 25, quarta-feira
santa, o país pararia - e a crise
também. O santificado hiato faria bem a todos. Membros do próprio governo, como Jango e Abelardo Jurema, ministro da Justiça,
partiriam para descansar em fazendas de amigos. Dispositivos
militares estavam em alerta para
desfechar um movimento, alguns
contra, outros a favor do governo.
Estes, porém, limitavam-se a uma
ficção na qual Jango e Brizola
acreditavam.
De Juiz de Fora, em companhia
de sua mulher, o general Mourão
Filho foi visitar igrejas em Ouro
Preto. O governador de Minas,
Magalhães Pinto, mais esperto do
que os demais, conspirava e fazia
articulações, afinal todos os dias
são santos, todos os dias são do
Senhor.
Carlos Lacerda fora informado
de uma agitação na Marinha,
mas parecia assunto menor, marinheiros que desejavam vestir-se
à paisana quando não mais estivessem em serviço.
Na Barra da Tijuca, a equipe
dirigida por Glauber Rocha tomava as últimas cenas de "Deus e
o Diabo na Terra do Sol", -mar
virando sertão, sertão virando
mar. Brigitte Bardot passeava pelas praias de Búzios.
Os grupinhos de jovens, que começavam a assumir uma outra
espécie de poder, ouviam o mais
espantoso fenômeno musical da
época: Os Beatles, uns rapazes de
Liverpool que, agrupados num
conjunto de rock, cantavam "A
Hard Day's Night".
Começava a noite de um dia difícil.
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