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São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A noite de um dia difícil

A massa foi reunida de muitas maneiras. Havia crescente motivação popular em torno das reformas. Mas alguns órgãos federais e paraestatais contribuíram com gasolina e viaturas, além de volumoso contingente humano. Carlos Lacerda, governador da Guanabara, tentou esvaziar o comício decretando feriado estadual. Esticou o fim de semana, pois o dia 13 de março de 1964 era uma sexta-feira. O feriado, chuvoso, não tirou muita gente da cidade e acabou engrossando o comício, que teve vários oradores sem importância, mas importantes presenças: os ministros militares, inclusive o general Jair Dantas Ribeiro, que havia garantido, horas antes, a um general que ninguém conhecia, mas que se chamava Artur da Costa e Silva, que não compareceria a um "comício de pelegos".
Miguel Arraes, governador de Pernambuco, deslocara-se de Recife e era a figura de destaque na primeira fila das autoridades. Leonel Brizola chegara a ameaçar a sua ausência, brigava frequentemente com o cunhado presidencial. Acabou indo ao comício, pretendia "dizer algumas verdades" a Jango, diante do povo.
-"É a Revolução!" -pensaram alguns teóricos da esquerda. Tantas e tamanhas reformas, em conjunto, equivaliam a uma transformação global da sociedade, que só seria possível por meio de um movimento armado que desalojasse privilégios e instaurasse uma normalidade nova.
- "É a Revolução!" -pensaram alguns militares, que haviam sido alertados para os intentos atribuídos a Goulart, um governo à Perón, através de uma República Sindicalista, com as forças armadas transformadas em milícias partidárias.
-"É uma loucura!" -disse Juscelino Kubitschek, bem distante da Central do Brasil, na fazenda de um amigo, em Sete Lagoas. Para JK, o comício tinha sido um erro e uma tolice. Jango deixara de ser presidente da República para ser apenas um presidente de partido que ambicionava o poder. "Ele passou dos limites! Saiu da legalidade! E a legalidade o sustinha. Vou romper com ele, publicamente. Vou prejudicar minha própria candidatura, mas não me interessa o apoio de Jango nesses termos."
Em Ipanema, na rua Nascimento Silva, um general desconhecido perdeu o sono depois de ouvir o comício pelo rádio. Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o general Humberto de Alencar Castello Branco acompanhava os movimentos políticos, mas o fazia com a cautela que um dos seus amigos, o coronel Vernon A. Walters, adido militar da Embaixada dos Estados Unidos, considerava "digna de um membro de Estado-Maior". Alguns militares, inclusive os detonadores da rebelião, achavam que tanta cautela era apenas a clássica posição de "ficar em cima do muro" para ver no que iam dar as coisas. De qualquer forma, era um militar inteligente e, para os padrões de sua profissão, culto e cultivado.
Depois do comício, Castello começou a esboçar um texto que seria transformado, em 20 de março, em Instrução Reservada dirigida aos "Exmos. Srs. Generais e demais militares do Estado-Maior do Exército e das Organizações Subordinadas". Não era, ainda, um apelo ao rompimento definitivo com o governo. Mas era um sintoma que tinha, entre outros destaques, o de justificar, na prática, o adjetivo encontradiço em pronunciamentos desse tipo: "indormido".
Indormido, Castello Branco gastou parte da noite na redação do documento, que é sucinto e, como diria o General Mourão Filho em suas memórias, "não chovia nem molhava".
Ao Laranjeiras, João Goulart chegou esbodegado pelo cansaço e pelas emoções do comício. Vestiu o pijama e declarou à mulher: "Estou pregado!". E dormiu.
O fim de março se aproximava. A última semana do mês seria de recesso: a Páscoa cairia no dia 29. A partir do dia 25, quarta-feira santa, o país pararia - e a crise também. O santificado hiato faria bem a todos. Membros do próprio governo, como Jango e Abelardo Jurema, ministro da Justiça, partiriam para descansar em fazendas de amigos. Dispositivos militares estavam em alerta para desfechar um movimento, alguns contra, outros a favor do governo. Estes, porém, limitavam-se a uma ficção na qual Jango e Brizola acreditavam.
De Juiz de Fora, em companhia de sua mulher, o general Mourão Filho foi visitar igrejas em Ouro Preto. O governador de Minas, Magalhães Pinto, mais esperto do que os demais, conspirava e fazia articulações, afinal todos os dias são santos, todos os dias são do Senhor.
Carlos Lacerda fora informado de uma agitação na Marinha, mas parecia assunto menor, marinheiros que desejavam vestir-se à paisana quando não mais estivessem em serviço.
Na Barra da Tijuca, a equipe dirigida por Glauber Rocha tomava as últimas cenas de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", -mar virando sertão, sertão virando mar. Brigitte Bardot passeava pelas praias de Búzios.
Os grupinhos de jovens, que começavam a assumir uma outra espécie de poder, ouviam o mais espantoso fenômeno musical da época: Os Beatles, uns rapazes de Liverpool que, agrupados num conjunto de rock, cantavam "A Hard Day's Night".
Começava a noite de um dia difícil.

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