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NELSON ASCHER
A necessidade de nações
O século 20 contribuiu
mais do que qualquer outro
para desmoralizar não apenas o
nacionalismo e o patriotismo como também a própria idéia de
nação. Malgrado suas motivações
ideológicas, os maiores conflitos
armados dos últimos cem anos
parecem ter sido provocados pela
disfuncionalidade do estado-nação, ou seja, pela propensão que
grupos humanos mostraram a se
organizarem de acordo com a
contigüidade geográfica, a continuidade histórica e uma certa (às
vezes flexível) homogeneidade étnica e/ou lingüística e/ou confessional.
Se bem que, quando esmiuçada,
ela se revele muito mais confusa,
a Segunda Guerra Mundial dá, à
distância, a impressão de ser inteligível, porque o embate, digamos,
entre esquerda e direita, ou entre
sociedades totalitárias e abertas,
se harmoniza melhor com a visão
de mundo contemporânea do que
uma miríade de conflagrações
que, emaranhadas e amiúde irredutíveis a singelas oposições binárias, opunham franceses a alemães, alemães a russos, poloneses
a russos e alemães, húngaros a romenos e ambos aos ingleses, japoneses a chineses, indonésios, filipinos, americanos etc. E, no entanto, a guerra de 1939-45 não derivou menos de ambições e paranóias nacionais do que a anterior, de 1914-18, uma guerra cujas
causas desencontradas, quanto
mais investigadas, menos ajudam a lhe explicar a irrupção, para nem falar do desfecho.
Ademais, antes que suas raízes
etno-religiosas, subjazendo a/e
antecedendo seu caráter nacional, se evidenciassem plenamente, a querela interminável do
Oriente Médio era sobretudo interpretada como puramente territorial. E o mesmo vale para as
sangueiras balcânicas com as
quais se encerrou o século passado. Estas, especialmente numa
época em que o Ocidente teria,
em tese, superado seus instintos
suicidas e homicidas, caracterizaram as causas nacionais como fúteis, bárbaras, primitivas, obsoletas.
Quem, afinal, seria doido o bastante para matar ou morrer com
o intuito de transformar uma nação quase inviável em meia-dúzia de estadozinhos impossíveis?
Que insânia levaria ex-católicos,
ex-muçulmanos e ex-cristãos ortodoxos a se massacrarem por
rancores que, imaginários ou, se
reais, obsessivamente exagerados,
pertenciam a outra era geológica?
É difícil, diante e depois disso, deixar de pensar a nação como um
conceito terminalmente falido,
não?
E, ainda assim, esse é somente
um lado da moeda ou, talvez, do
dado. Pois, quando uma nação
dá certo, quando funciona, nenhuma forma diferente de organização a supera. Se a África e o
Oriente Médio, devidamente desorganizados pelos europeus e
otomanos, constituem o contra-exemplo disso, o continente americano inteiro, com suas fronteiras geralmente estáveis e sua escassez de atritos explosivos, pode,
desde a independência, ser considerado um paradigma triunfante. Do Canadá à Argentina, as
nações aqui se consolidaram e
ninguém sério deseja seriamente
substituí-las por algo distinto.
Grosso modo, no subcontinente
indiano, uma Índia dia a dia
mais funcional, capaz de conferir
uma identidade comum a confissões variadíssimas e aos falantes
de uma centena de idiomas, eclipsa o fracasso paquistanês. Até no
mundo árabe, com suas duas dezenas de países, as tentativas espontâneas ou impostas de criar
entidades supranacionais, como
a RAU (República Árabe Unida:
a fusão hipotética do Egito com a
Síria e, depois, com o Iêmen), a
Grande Síria (ou seja, a Síria dominando o Líbano, Israel, os territórios contestados e, quem sabe,
a Jordânia) ou o Grande Iraque
(que resultaria da anexação do
Kuait, partes do Irã e da Arábia
Saudita), foram sem exceção por
água abaixo, enquanto, para a
surpresa de todos, as fronteiras
"artificiais" traçadas por ingleses
e franceses se provaram duradouras.
Acrescente-se que a maioria das
instituições internacionais, da Liga das Nações durante o entreguerras à ONU atual, só não foram mais nocivas graças à sua
inerente inutilidade combinada
com a inércia e a corrupção. Nem
sequer um bloco tão viável quanto o Velho Mundo pacificado
após a Guerra Fria tem conseguido superar suas contradições internas e atingir um patamar superior de confluência. Os Estados
Unidos da Europa seguem, portanto, sendo o devaneio irrealizado de burocratas não eleitos, mas
ociosos e arrogantes.
Há décadas que, pelo menos no
âmbito institucional e acadêmico, somente se discute o estado-nação à luz de suas patologias. A
elite transnacional que, auxiliada
pelo avião a jato e pelo progresso
das telecomunicações, gerou ou
foi gerada por inúmeras organizações cujos nomes são sempre siglas, já nem busca lhe evocar as
possíveis virtudes. Os exemplos de
êxito, como o dos países da anglosfera, quando não sumariamente ignorados, são submetidos
a uma barragem de deformações
e desinformações. Por seu turno,
naçõezinhas prósperas e bem-sucedidas (as escandinavas, Holanda, Suíça, Cingapura etc.) são
normalmente descartadas como
pequenas exceções que, apesar de
irrelevantes, antes confirmam a
regra que torna compulsório o
pessimismo dos bem-pensantes
mal-intencionados.
O compasso da música dodecafônica de nossa esfera desbotadamente azul-cinzenta é, e será no
futuro previsível, marcado pela
globalização. Falta a muitos acatarem a irreversibilidade do processo. Outros tantos se julgam aptos a domá-lo ou, por assim dizer,
"humanizá-lo". Trata-se de ansiedades legítimas. Traduzi-las
em ação implica, no entanto, reavaliar sem preconceito o saldo do
estado-nação e admitir que países bem-sucedidos são, no momento, as únicas entidades com
chances de impor alguma ordem
ao presente caos.
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