São Paulo, segunda-feira, 26 de setembro de 2005

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NELSON ASCHER

A necessidade de nações

O século 20 contribuiu mais do que qualquer outro para desmoralizar não apenas o nacionalismo e o patriotismo como também a própria idéia de nação. Malgrado suas motivações ideológicas, os maiores conflitos armados dos últimos cem anos parecem ter sido provocados pela disfuncionalidade do estado-nação, ou seja, pela propensão que grupos humanos mostraram a se organizarem de acordo com a contigüidade geográfica, a continuidade histórica e uma certa (às vezes flexível) homogeneidade étnica e/ou lingüística e/ou confessional.
Se bem que, quando esmiuçada, ela se revele muito mais confusa, a Segunda Guerra Mundial dá, à distância, a impressão de ser inteligível, porque o embate, digamos, entre esquerda e direita, ou entre sociedades totalitárias e abertas, se harmoniza melhor com a visão de mundo contemporânea do que uma miríade de conflagrações que, emaranhadas e amiúde irredutíveis a singelas oposições binárias, opunham franceses a alemães, alemães a russos, poloneses a russos e alemães, húngaros a romenos e ambos aos ingleses, japoneses a chineses, indonésios, filipinos, americanos etc. E, no entanto, a guerra de 1939-45 não derivou menos de ambições e paranóias nacionais do que a anterior, de 1914-18, uma guerra cujas causas desencontradas, quanto mais investigadas, menos ajudam a lhe explicar a irrupção, para nem falar do desfecho.
Ademais, antes que suas raízes etno-religiosas, subjazendo a/e antecedendo seu caráter nacional, se evidenciassem plenamente, a querela interminável do Oriente Médio era sobretudo interpretada como puramente territorial. E o mesmo vale para as sangueiras balcânicas com as quais se encerrou o século passado. Estas, especialmente numa época em que o Ocidente teria, em tese, superado seus instintos suicidas e homicidas, caracterizaram as causas nacionais como fúteis, bárbaras, primitivas, obsoletas.
Quem, afinal, seria doido o bastante para matar ou morrer com o intuito de transformar uma nação quase inviável em meia-dúzia de estadozinhos impossíveis? Que insânia levaria ex-católicos, ex-muçulmanos e ex-cristãos ortodoxos a se massacrarem por rancores que, imaginários ou, se reais, obsessivamente exagerados, pertenciam a outra era geológica? É difícil, diante e depois disso, deixar de pensar a nação como um conceito terminalmente falido, não?
E, ainda assim, esse é somente um lado da moeda ou, talvez, do dado. Pois, quando uma nação dá certo, quando funciona, nenhuma forma diferente de organização a supera. Se a África e o Oriente Médio, devidamente desorganizados pelos europeus e otomanos, constituem o contra-exemplo disso, o continente americano inteiro, com suas fronteiras geralmente estáveis e sua escassez de atritos explosivos, pode, desde a independência, ser considerado um paradigma triunfante. Do Canadá à Argentina, as nações aqui se consolidaram e ninguém sério deseja seriamente substituí-las por algo distinto.
Grosso modo, no subcontinente indiano, uma Índia dia a dia mais funcional, capaz de conferir uma identidade comum a confissões variadíssimas e aos falantes de uma centena de idiomas, eclipsa o fracasso paquistanês. Até no mundo árabe, com suas duas dezenas de países, as tentativas espontâneas ou impostas de criar entidades supranacionais, como a RAU (República Árabe Unida: a fusão hipotética do Egito com a Síria e, depois, com o Iêmen), a Grande Síria (ou seja, a Síria dominando o Líbano, Israel, os territórios contestados e, quem sabe, a Jordânia) ou o Grande Iraque (que resultaria da anexação do Kuait, partes do Irã e da Arábia Saudita), foram sem exceção por água abaixo, enquanto, para a surpresa de todos, as fronteiras "artificiais" traçadas por ingleses e franceses se provaram duradouras.
Acrescente-se que a maioria das instituições internacionais, da Liga das Nações durante o entreguerras à ONU atual, só não foram mais nocivas graças à sua inerente inutilidade combinada com a inércia e a corrupção. Nem sequer um bloco tão viável quanto o Velho Mundo pacificado após a Guerra Fria tem conseguido superar suas contradições internas e atingir um patamar superior de confluência. Os Estados Unidos da Europa seguem, portanto, sendo o devaneio irrealizado de burocratas não eleitos, mas ociosos e arrogantes.
Há décadas que, pelo menos no âmbito institucional e acadêmico, somente se discute o estado-nação à luz de suas patologias. A elite transnacional que, auxiliada pelo avião a jato e pelo progresso das telecomunicações, gerou ou foi gerada por inúmeras organizações cujos nomes são sempre siglas, já nem busca lhe evocar as possíveis virtudes. Os exemplos de êxito, como o dos países da anglosfera, quando não sumariamente ignorados, são submetidos a uma barragem de deformações e desinformações. Por seu turno, naçõezinhas prósperas e bem-sucedidas (as escandinavas, Holanda, Suíça, Cingapura etc.) são normalmente descartadas como pequenas exceções que, apesar de irrelevantes, antes confirmam a regra que torna compulsório o pessimismo dos bem-pensantes mal-intencionados.
O compasso da música dodecafônica de nossa esfera desbotadamente azul-cinzenta é, e será no futuro previsível, marcado pela globalização. Falta a muitos acatarem a irreversibilidade do processo. Outros tantos se julgam aptos a domá-lo ou, por assim dizer, "humanizá-lo". Trata-se de ansiedades legítimas. Traduzi-las em ação implica, no entanto, reavaliar sem preconceito o saldo do estado-nação e admitir que países bem-sucedidos são, no momento, as únicas entidades com chances de impor alguma ordem ao presente caos.


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