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Papa foi direto ao que interessa no fim do século
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
²
Mesmo sem concordar com
todas as premissas, confesso
que me alegrei com a nova encíclica do papa João Paulo 2º. É
raro ver um texto na mídia tratando de questões tão amplas
como o desenvolvimento da filosofia e da ciência ocidentais
com uma ligeira referência aos
ventos do Oriente.
Pragmatismo, historicismo,
niilismo, nenhuma das correntes modernas de pensamento
escapou da crítica da Igreja Católica, que as vê como descaminhos que conduzem à solidão e
ao desespero.
Aí é que está a coisa para
mim. Reconheço o esforço globalizante do texto da igreja, a
elegância de suas críticas, mas,
no entanto, acho que é possível
uma alternativa ao niilismo
que não conduza necessariamente a um encontro com Deus
nem ao desespero e à solidão do
pensamento contemporâneo.
Reconhecer essa possibilidade
não significa dispor de uma solução acabada. Significa apenas que o diagnóstico da crise
do niilismo pode ser abordado
de outra forma, sem partir da
premissa de que a causa de tudo é o afastamento da velha totalidade religiosa.
Os autores tendem a considerar que o Iluminismo falhou
numa nova totalidade racional
e mística porque suas idéias carecem de uma relação mais
profunda com a prática social.
Em vez de enriquecer a realidade com seus valores morais, o
Iluminismo se degenerou numa
pura racionalização (Weber),
numa capitalização (Marx),
numa racionalidade instrumental (Escola de Frankfurt) e
num colapso do Ser (Heidegger),
Até aí tudo bem, diriam os leitores do texto papal. Longe de
confrontar o niilismo, a filosofia moderna acabou contribuindo para dissolver mais as
bases da vida cotidiana. No entanto, não foram esgotadas as
respostas ao problema, tal como é discutido hoje, daí a sensação de pessimismo que a encíclica transmite quando trata
do esforço paralelo ao pensamento religioso.
Claro que o caminho de combate ao niilismo pode ser uma
insistência na perspectiva religiosa, preexistente a ele. Mas é
apenas uma saída, a mais tradicional, ainda que possa ser
fundamentada em diálogo com
a modernidade.
Segundo Simon Critchley, há
também uma saída agnóstica,
bem britânica, que nega importância ao niilismo como problema atual e o situa como uma
espécie da mal-estar da burguesia da Europa Central.
Nessa tendência, pura e simplesmente se descarta o niilismo como uma filosofia da história, pessimista demais para
definir o mundo moderno.
Outra tendência é considerar
que o mundo é absurdo -mesmo que nada se possa fazer para modificá-lo, o melhor é ser
feliz, sem se preocupar. Os analistas a consideram uma janela
para o conformismo.
Há também a vontade de
adotar um niilismo ativo, uma
violenta força de destruição que
Nietzsche associava ao anarquismo russo, mas que pode assumir inúmeras formas: romantismo, revolução, terrorismo, revolução cibererótica,
punks etc.
Os problemas que a encíclica
papal coloca em tão alto nível
suscitam uma busca realmente
difícil para quem não quer voltar à religião, rejeitar o niilismo
como um pseudoproblema, relaxar e gozar pura e simplesmente nem mesmo revolucionar o mundo.
Simon Critchley, já citado
aqui ao delinear o problema,
acha que há uma quinta saída,
capaz de evitar a passividade e
o niilismo ativo, que, ao romper
violentamente com ele, continua de uma certa forma prisioneiro de sua lógica. Inspirado
em Adorno, Critchley vê na
obra de Samuel Beckett uma referência fundamental. Ao contrário do senso comum, Critchley afirma que Beckett não é
niilista no sentido de afirmar
que a vida não tem sentido ou
de celebrar a falta de sentido.
Por isso sua obra foi considerada a mais radical crítica dos
campos de concentração, embora não os tenha mencionado diretamente.
Beckett reconstrói o sentido
da falta de sentido, isto é, delineia os contornos do niilismo
em vez de tentar competir com
as teorias da redenção que estão na mesa. Soube que nos Estados Unidos estão discutindo o
caminho do capitalismo depois
da revolução digital. Meu palpite pessoal é que, num próspero futuro, a indústria mais sólida será a indústria do sentido,
livros, vídeos, cursos, enfim, tudo o que possa contribuir para
essa tentativa quase maníaca
de superar o niilismo.
A encíclica é um documento
que merecia mais debates do
que a chamada globalização.
Parabéns aos filósofos da Igreja
Católica por nos darem esse
presente no fim do século.
Não é preciso concordar com
tudo para reconhecer que levantaram as verdadeiras questões essenciais da humanidade.
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