São Paulo, segunda, 26 de outubro de 1998

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Papa foi direto ao que interessa no fim do século

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha ² Mesmo sem concordar com todas as premissas, confesso que me alegrei com a nova encíclica do papa João Paulo 2º. É raro ver um texto na mídia tratando de questões tão amplas como o desenvolvimento da filosofia e da ciência ocidentais com uma ligeira referência aos ventos do Oriente.
Pragmatismo, historicismo, niilismo, nenhuma das correntes modernas de pensamento escapou da crítica da Igreja Católica, que as vê como descaminhos que conduzem à solidão e ao desespero.
Aí é que está a coisa para mim. Reconheço o esforço globalizante do texto da igreja, a elegância de suas críticas, mas, no entanto, acho que é possível uma alternativa ao niilismo que não conduza necessariamente a um encontro com Deus nem ao desespero e à solidão do pensamento contemporâneo.
Reconhecer essa possibilidade não significa dispor de uma solução acabada. Significa apenas que o diagnóstico da crise do niilismo pode ser abordado de outra forma, sem partir da premissa de que a causa de tudo é o afastamento da velha totalidade religiosa.
Os autores tendem a considerar que o Iluminismo falhou numa nova totalidade racional e mística porque suas idéias carecem de uma relação mais profunda com a prática social. Em vez de enriquecer a realidade com seus valores morais, o Iluminismo se degenerou numa pura racionalização (Weber), numa capitalização (Marx), numa racionalidade instrumental (Escola de Frankfurt) e num colapso do Ser (Heidegger),
Até aí tudo bem, diriam os leitores do texto papal. Longe de confrontar o niilismo, a filosofia moderna acabou contribuindo para dissolver mais as bases da vida cotidiana. No entanto, não foram esgotadas as respostas ao problema, tal como é discutido hoje, daí a sensação de pessimismo que a encíclica transmite quando trata do esforço paralelo ao pensamento religioso.
Claro que o caminho de combate ao niilismo pode ser uma insistência na perspectiva religiosa, preexistente a ele. Mas é apenas uma saída, a mais tradicional, ainda que possa ser fundamentada em diálogo com a modernidade.
Segundo Simon Critchley, há também uma saída agnóstica, bem britânica, que nega importância ao niilismo como problema atual e o situa como uma espécie da mal-estar da burguesia da Europa Central.
Nessa tendência, pura e simplesmente se descarta o niilismo como uma filosofia da história, pessimista demais para definir o mundo moderno.
Outra tendência é considerar que o mundo é absurdo -mesmo que nada se possa fazer para modificá-lo, o melhor é ser feliz, sem se preocupar. Os analistas a consideram uma janela para o conformismo.
Há também a vontade de adotar um niilismo ativo, uma violenta força de destruição que Nietzsche associava ao anarquismo russo, mas que pode assumir inúmeras formas: romantismo, revolução, terrorismo, revolução cibererótica, punks etc.
Os problemas que a encíclica papal coloca em tão alto nível suscitam uma busca realmente difícil para quem não quer voltar à religião, rejeitar o niilismo como um pseudoproblema, relaxar e gozar pura e simplesmente nem mesmo revolucionar o mundo.
Simon Critchley, já citado aqui ao delinear o problema, acha que há uma quinta saída, capaz de evitar a passividade e o niilismo ativo, que, ao romper violentamente com ele, continua de uma certa forma prisioneiro de sua lógica. Inspirado em Adorno, Critchley vê na obra de Samuel Beckett uma referência fundamental. Ao contrário do senso comum, Critchley afirma que Beckett não é niilista no sentido de afirmar que a vida não tem sentido ou de celebrar a falta de sentido. Por isso sua obra foi considerada a mais radical crítica dos campos de concentração, embora não os tenha mencionado diretamente.
Beckett reconstrói o sentido da falta de sentido, isto é, delineia os contornos do niilismo em vez de tentar competir com as teorias da redenção que estão na mesa. Soube que nos Estados Unidos estão discutindo o caminho do capitalismo depois da revolução digital. Meu palpite pessoal é que, num próspero futuro, a indústria mais sólida será a indústria do sentido, livros, vídeos, cursos, enfim, tudo o que possa contribuir para essa tentativa quase maníaca de superar o niilismo.
A encíclica é um documento que merecia mais debates do que a chamada globalização. Parabéns aos filósofos da Igreja Católica por nos darem esse presente no fim do século.
Não é preciso concordar com tudo para reconhecer que levantaram as verdadeiras questões essenciais da humanidade.



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