São Paulo, Sexta-feira, 26 de Novembro de 1999


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"Collor se fez em função de jornalistas, não de patrões"

da Reportagem Local

Leia abaixo trechos da entrevista que o jornalista Mario Sergio Conti concedeu à Folha na quarta-feira, na sede da editora Companhia das Letras, em São Paulo.

Folha - Lendo o livro, se tem a impressão de que você fez com a imprensa o que ela fez com Fernando Collor durante o período que culminou no processo de impeachment. Ou seja, uma espécie de devassa. O livro trata mais da imprensa do que do governo Collor, embora tenha revelações sobre este também.
Mario Sergio Conti -
É isso mesmo. O livro é, em primeiro lugar, sobre a imprensa e, em segundo, sobre o poder, sobre as relações do poder com essa outra instância de poder que é a imprensa. Em terceiro lugar, é sobre o Collor, que funciona quase como um pretexto.
Escolhi o período por ter participado da sua cobertura e porque a imprensa nunca foi tratada no Brasil da maneira como mereceria. Há livros excelentes a respeito, o do Claudio Abramo ("A Regra do Jogo") e o do Samuel Wainer ("Minha Razão de Viver"), e eu me inspirei neles.
Mas em relação aos diversos níveis de apuração e de decisão, do patronato aos repórteres e fotógrafos, não há praticamente nada publicado. Parece que a imprensa brasileira não tem história. Não fiz a história da imprensa, mas pego os últimos 30, 40 anos para contá-la por dentro.

Folha - O objeto do livro é muito maior do que o período Collor. Era essa a idéia inicial?
Conti -
Na cobertura do Collor, os órgãos de imprensa agiram segundo a sua formação, a sua história. Se a Folha é boa em polêmica, em puxar briga, no tom agressivo, eu quis investigar de onde vem isso. Da mesma forma o "Estadão". Se ele é respeitado pelos editoriais, pela sua palavra, por refletir um certo anseio da burguesia e da classe média paulistana, é preciso investigar o porquê.

Folha - Você diz na biografia que se inspirou fundamentalmente em "The Powers That Be", de David Halberstam, que conta a história de quatro empresas jornalísticas norte-americanas até o caso Watergate.
Conti -
Ele pega a "Time", a CBS, o "Los Angeles Times" e o "The New York Times" desde o começo até o Watergate. Meu livro é nitidamente inspirado nisso, mas não é uma transposição automática, contempla particularidades da história brasileira.

Folha - As biografias que o livro traça resultam às vezes simpáticas aos retratados, embora o conjunto seja avassalador. O livro mostra que a imbricação da imprensa com o poder é maior do que se imagina. É um raio X do patronato brasileiro?
Conti -
Concordo que o livro seja simpático à imprensa sem ser condescendente. Todo leitor de Antonio Candido deve lembrar quando ele diz, na abertura da "Formação da Literatura Brasileira", que, sem abandonar o espírito crítico, é simpático ao assunto; sem ir longe na comparação, eu também me arrogo ao dizer que, sem abandonar o espírito crítico, sou simpático à imprensa.
É o meu meio, gosto e vivo disso. É importante, além disso, que se tenha no país uma imprensa livre, atuante, dinâmica. Isso tem os seus outros lados: uma tremenda competição entre as empresas. E a imprensa está imbricada com o poder. Não é uma relação umbilical, é uma simbiose.
Eu quis mostrar como isso se dá na prática. Não sei se é uma devassa da imprensa, talvez não seja essa a melhor palavra, mas é uma tentativa de raio X do seu modo de operar. A intenção não foi hostilizar, foi mostrar a vida real, como isso funciona na prática.

Folha - Mas você não trata os meios de comunicação em bloco, procura as idiossincrasias, as especificidades. Quando começou, o projeto era esse?
Conti -
O livro nasceu da minha curiosidade de entender os meios de comunicação. Por exemplo, por que certos meios que tinham maior vocação para fazer a exposição dos escândalos envolvendo Collor não o fizeram?
A Folha tinha tudo para fazer isso. Foi a primeira a apurar, ainda durante a campanha eleitoral, os escândalos de Collor em Alagoas. Fez uma série de reportagens assinadas por Elvira Lobato, Clóvis Rossi. No entanto, perdeu o pé. Por que perdeu?
Eu não tinha respostas a essas perguntas, acho que o livro reúne elementos para se traçar o perfil e o comportamento de cada órgão de imprensa, durante, mas também antes de Collor.

Folha - O livro tem dois movimentos claros, sinalizados nas duas partes em que se divide. O primeiro, de incorporação de Collor pela chamada burguesia, os setores dominantes da sociedade; o segundo, de expulsão de Collor por aqueles que o haviam acolhido. Embora você não faça a análise política desse processo de maneira explícita, ela está pressuposta. Fica claro que Collor não caiu por causa da corrupção, apenas.
Conti -
Concordo. O livro procura mostrar como um sujeito de um Estado afastado, periférico, desconhecido, consegue ascender ao plano nacional e galvanizar os eleitores. Há um senso comum que diz "a Globo fez o Collor". Não foi assim. O Roberto Marinho tinha outros candidatos, resolveu apoiar o Collor um pouco a contragosto, quando ele tinha 43% das preferências. O Collor se fez muito em função do que conseguiu com os jornalistas, não com os patrões. A entrevista para o "Jornal do Brasil", o "Globo Repórter" e as páginas amarelas da "Veja" em 87, a capa da "Veja" em 88. Tudo foi responsabilidade dos profissionais, não adianta colocar a culpa no patrão.
Fomos nós que fizemos aquilo. Por identidade política ou por inexperiência. Isso mostra o crescimento do Collor e como a burguesia foi atrás dele sabendo em parte quem ele era. Depois, no governo, é evidente que ele não caiu só por corrupção. Foi um movimento muito mais amplo. A hostilidade dele em relação ao empresariado, o plano delirante do PC de ter uma TV que se contrapusesse à Globo e uma companhia de aviação que fizesse frente à Varig, isso tudo tem de ser levado em conta. Não vamos negar a corrupção, obviamente, mas a queda só se consuma depois das manifestações populares.

Folha - A capa do "Caçador de Marajás", publicada pela "Veja" em 88, ficou com má fama depois de tudo o que aconteceu na "Era Collor". Você sugere que a escolha da capa foi quase casual, que havia outra reportagem para ser capa e que acabou pesando em favor de Collor uma boa foto que havia sido feita por Ubirajara Dettmar. Pode soar como desculpa a posteriori.
Conti -
Aquela capa estava correta. Você tem um governador de Alagoas que está combatendo o nepotismo, a ineficiência da máquina pública, o apadrinhamento, e que está atacando o governo central. Esse sujeito é bem-apessoado, articulado, fotogênico, carismático. Isso é notícia. Uma das funções da imprensa é revelar personagens novos.
Não acho correto atribuir a ela benefício eleitoral ao Collor. A reportagem é de março de 88, a eleição foi no fim de 89. Isso seria estigmatizar a grande imprensa por razões erradas. Pode-se e deve-se atacá-la, mas com inteligência.
Era melhor dar a capa ao bonitão com aquela foto do que ao Ulysses Guimarães, conhecidíssimo, manobrando pelo parlamentarismo, um tema chatíssimo. Foi uma opção editorial.

Folha - Depois de ter feito a capa com Pedro Collor denunciando o esquema PC e outra com Renan Calheiros dizendo que Collor sabia de tudo desde o início, a "Veja" publicou uma capa perguntando "No que vai dar a crise?", colocando, em forma de teste, as alternativas seguintes: "Impeachment; renúncia; parlamentarismo já; Collor continua, forte; Collor continua, fraco", esta última assinalada.
Você atribui a responsabilidade da capa a uma decisão pessoal sua, mas a impressão é de que houve um recuo, fruto da pressão sobre Roberto Civita.
Conti -
O Roberto estava viajando. A decisão foi tomada por mim, e eu errei na avaliação. Imaginei: o Collor está se recuperando, está se apoiando na paralisia da apuração e acho que ele vai até o fim, enfraquecido. Errei.

Folha - Qual veículo de comunicação se saiu melhor no período, em termos jornalísticos?
Conti -
Não é um campeonato. Isso empobrece a discussão. A capa do Pedro Collor foi fundamental. Não acho que ela teria saído se não houvesse a história da "Veja", uma cultura acumulada desde as reportagens de 69 sobre o regime militar que eu recupero no livro.
Não acho também que seria possível aquela capa sem o que a Folha fez antes, a apuração em Alagoas durante a campanha, a reação ao processo que o presidente moveu contra jornalistas da Folha, a carta aberta ao Collor escrita pelo Otavio (Frias Filho).
Tem também as reportagens do "Jornal do Brasil" sobre a LBA, envolvendo a Rosane (Collor). Isso vai criando uma acumulação, e os diversos órgãos vão reagindo aos fatos à sua maneira. Não se deve subestimar o trabalho dos repórteres, aqueles que descobrem as coisas e conseguem publicá-las porque o órgão em que trabalham é de certa maneira.

Folha - O que mudou na imprensa depois de Collor?
Conti -
Estruturalmente não mudou nada. Continuam as mesmas empresas e basicamente os mesmos profissionais à frente delas. Mas é mais difícil que um aventureiro possa ser tratado hoje como Collor foi tratado na campanha, com certa ligeireza. A imprensa está mais atenta.

Folha - E a imbricação dos meios de comunicação com o poder, mudou alguma coisa?
Conti -
Estruturalmente permanece a mesma coisa. É claro que há mudanças. Hoje quem está na direção de jornalismo da Rede Globo é o Evandro (Carlos de Andrade), não é mais o Alberico (Souza Cruz). Quem está na direção são Roberto Irineu e José Roberto, o doutor Roberto Marinho está se afastando. Isso provoca alguma modificação. Mas não são mudanças estruturais.

Folha - Você incluiu denúncias de corrupção envolvendo jornalistas. Mário Alberto de Almeida, atual diretor de redação da "Gazeta Mercantil", é acusado de ter oferecido, em 89, 250 mil dólares ao então diretor de redação de "O Estado de S. Paulo", Augusto Nunes, em troca de reportagens favoráveis a Íris Rezende, ministro da Agricultura de Sarney, que queria se cacifar como candidato do PMDB para a eleição presidencial.
Conti -
Essa história em parte não é nova. Está relatada numa tese universitária escrita por Liege Socorro Albuquerque Peres, que entrevistou o Mino (Carta), que se referiu ao episódio sem citar nomes. Eu sabia os nomes.

Folha - Mas no seu livro, logo depois de relatar o caso, você diz que a "Veja" publicou duas reportagens a respeito de Íris Rezende, uma em fevereiro de 89 e outra em agosto de 90, quando era candidato ao governo de Goiás. Nas duas reportagens, a expressão "o ministro das boas notícias", que, segundo você diz, deveria constar como título obrigatório da suposta reportagem recusada por Nunes, aparece no meio do texto, com pequenas variações. É uma coincidência?
Conti -
Não há nenhuma insinuação, nenhuma conclusão. Eu não consegui apurar. Apenas registrei que a expressão que Mário de Almeida exigia está em "Veja".

Folha - O diretor da "Veja" na época era José Roberto Guzzo. Você está sugerindo que houve corrupção na revista?
Conti -
Estou apenas registrando o fato. Não gostaria que o livro fosse lido em função desses casos, embora sejam significativos.

Folha - No epílogo, você aborda a morte de PC e parece reiterar a versão do crime passional seguido de suicídio. A "Veja" comprou a versão na época. Você ainda acredita nela?
Conti -
A nossa primeira reportagem não era taxativa em favor do crime passional. Depois demos uma capa dizendo "Caso encerrado", quando obtivemos o laudo com exclusividade.
Acreditei que o laudo estava bem fundamentado e se casava com a hipótese do crime passional. Posteriormente viu-se que o laudo era contestável.
No livro eu quis retomar a tese do crime passional, que ficou esquecida. Mas o caso não está encerrado e devemos ir com calma.


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