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CARLOS HEITOR CONY
A velhinha do largo da Purificação
Vereador em primeiro mandato, ele combatia o prefeito com
unhas e dentes, aliás, dentadura.
Apesar de moço, perdera os dentes
num acidente de carro. Não vêm
ao caso nem a dentadura nem o
desastre, mas a insistência com
que, todas as tardes, da tribuna
da Câmara Municipal, ele acusava a administração do prefeito.
Não chegou a líder da oposição,
mas era como se fosse. E aproveitando o fato de os debates serem
transmitidos pela rádio Roquete
Pinto, que pertencia ao município, não deixava pedra sobre pedra, acusava o prefeito de tudo,
desde a corrupção no trato do dinheiro público até a devassidão
na vida pessoal.
O prefeito tinha a fama de apreciar misses disso e daquilo, e o Rio
chegou a ter, entre outros tipos de
miss, uma que se intitulava Miss
da Mi-Carême, bolação importada da França a que ninguém dava importância -com a óbvia
exceção do próprio alcaide.
Apesar da virulência do vereador contra o poder local, volta e
meia, e sempre a pedido de seus
eleitores, ele requeria melhoramentos urbanos para seu reduto,
um asfaltamento de rua, um grupo escolar, um posto de saúde,
uma bica d'água, coisas assim. E
eis que um dia, aberta a sessão, o
contínuo vem avisar que uma velhinha desejava falar com ele. Vai
atendê-la e ouve a história. Identificando-se como sua eleitora, ela
deseja agradecer a providência
tomada.
Sem saber que providência havia tomado, o vereador pediu detalhes. A velhinha lembrou-lhe o
abaixo-assinado dos moradores
do largo da Purificação, num subúrbio abandonado pela administração municipal. Havia enchentes, lama, um menino se afogara no esgoto a céu aberto que
corria num dos cantos da praça,
que era dominada por malfeitores, gente da pesada, que matava
e escondia o corpo das vítimas
num matagal ao lado.
Horrorizado, o vereador fez um
requerimento pedindo ao prefeito
imediata urbanização da área.
Como não tinha nenhuma esperança de ser atendido, esqueceu
as desditas do largo da Purificação. Guardaria o requerimento
em seu arquivo pessoal e, na próxima campanha, poderia exibi-lo
como prova de seu desvelo para
com os moradores abandonados
pela administração municipal.
E vinha agora a humilde moradora do local, uma velhinha caindo pelas tabelas, agradecer o pedido que ele fizera ao prefeito.
- Eu estava dormindo, doutor,
quando ouvi o barulho dos caminhões se aproximando. Era madrugada. Uma porção de operários começou a trabalhar, canalizaram a vala do esgoto, derrubaram o galpão onde os bandidos se
escondiam, trouxeram tapetes de
grama e forraram a praça toda,
que ficou uma beleza. Ao meio-dia, trouxeram postes de luz fluorescente e um coreto inteiro que
foi colocado no centro do largo.
Num só dia, aquilo virou um paraíso e nós devemos tudo ao senhor!
Pasmo, o vereador voltou ao
plenário e pediu a palavra para
uma comunicação urgente. Queria agradecer ao prefeito, que
atendendo ao pedido de um feroz
adversário, mandara urbanizar o
largo da Purificação, no subúrbio
tal, um dos grotões mais tradicionais da oposição.
Acontece que o prefeito costumava ouvir os debates da Câmara Municipal pela rádio Roquete
Pinto, que por sinal tinha excelente programação, na qual o
único desastre era justamente a
transmissão dos debates daquilo
que os jornais chamavam de
"edilidade", ou seja, dos vereadores.
O prefeito também ficou pasmo.
Como? Ele mandara atender a
um requerimento daquele idiota,
daquele cafajeste da oposição,
que todos os dias o ameaçava
com comissões de inquérito, que
já pedira o seu impeachment por
causa de prestação de contas do
exercício passado?
Pegou o telefone e ligou para a
Secretaria de Obras, queria falar
com o diretor do Serviço de Parques e Jardins. Que história era
aquela, gastar o dinheiro da administração atendendo a um vereador que o chamava de incompetente, venal e corrupto? Cabeças iriam rolar!
O secretário pediu cinco minutos para se informar sobre o caso.
E cinco minutos após retomou
com a informação: houvera um
curto-circuito na papelada, o largo que deveria ser urbanizado era
o da Consolação, erro idiota, de
escriturários subalternos.
O prefeito exigiu que o mal fosse
reparado. E dois dias após, a velhinha foi novamente à Câmara
Municipal, chamou o vereador e
contou-lhe a história:
- Eu estava dormindo, doutor,
quando ouvi o barulho dos caminhões chegando. Era madrugada.
Desceu uma porção de homens,
tudo da prefeitura. Arrebentaram a canalização da vala do esgoto, enrolaram novamente os
tapetes de grama, tiraram os postes de luz e até o coreto saiu inteiro, foi levado por uma jamanta
enorme para não sei onde. O largo ficou como estava. E como choveu durante a noite, a lama voltou a rolar, a gente nem pode
abrir a porta da casa, está tudo
um inferno.
O vereador abanou os braços:
- E o que a senhora quer que
eu faça?
- Nada não, senhor. Eu só
queria que o senhor me explicasse
tudo isso.
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