São Paulo, Sexta-feira, 26 de Novembro de 1999


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CARLOS HEITOR CONY
A velhinha do largo da Purificação

Vereador em primeiro mandato, ele combatia o prefeito com unhas e dentes, aliás, dentadura. Apesar de moço, perdera os dentes num acidente de carro. Não vêm ao caso nem a dentadura nem o desastre, mas a insistência com que, todas as tardes, da tribuna da Câmara Municipal, ele acusava a administração do prefeito.
Não chegou a líder da oposição, mas era como se fosse. E aproveitando o fato de os debates serem transmitidos pela rádio Roquete Pinto, que pertencia ao município, não deixava pedra sobre pedra, acusava o prefeito de tudo, desde a corrupção no trato do dinheiro público até a devassidão na vida pessoal.
O prefeito tinha a fama de apreciar misses disso e daquilo, e o Rio chegou a ter, entre outros tipos de miss, uma que se intitulava Miss da Mi-Carême, bolação importada da França a que ninguém dava importância -com a óbvia exceção do próprio alcaide.
Apesar da virulência do vereador contra o poder local, volta e meia, e sempre a pedido de seus eleitores, ele requeria melhoramentos urbanos para seu reduto, um asfaltamento de rua, um grupo escolar, um posto de saúde, uma bica d'água, coisas assim. E eis que um dia, aberta a sessão, o contínuo vem avisar que uma velhinha desejava falar com ele. Vai atendê-la e ouve a história. Identificando-se como sua eleitora, ela deseja agradecer a providência tomada.
Sem saber que providência havia tomado, o vereador pediu detalhes. A velhinha lembrou-lhe o abaixo-assinado dos moradores do largo da Purificação, num subúrbio abandonado pela administração municipal. Havia enchentes, lama, um menino se afogara no esgoto a céu aberto que corria num dos cantos da praça, que era dominada por malfeitores, gente da pesada, que matava e escondia o corpo das vítimas num matagal ao lado.
Horrorizado, o vereador fez um requerimento pedindo ao prefeito imediata urbanização da área. Como não tinha nenhuma esperança de ser atendido, esqueceu as desditas do largo da Purificação. Guardaria o requerimento em seu arquivo pessoal e, na próxima campanha, poderia exibi-lo como prova de seu desvelo para com os moradores abandonados pela administração municipal.
E vinha agora a humilde moradora do local, uma velhinha caindo pelas tabelas, agradecer o pedido que ele fizera ao prefeito.
- Eu estava dormindo, doutor, quando ouvi o barulho dos caminhões se aproximando. Era madrugada. Uma porção de operários começou a trabalhar, canalizaram a vala do esgoto, derrubaram o galpão onde os bandidos se escondiam, trouxeram tapetes de grama e forraram a praça toda, que ficou uma beleza. Ao meio-dia, trouxeram postes de luz fluorescente e um coreto inteiro que foi colocado no centro do largo. Num só dia, aquilo virou um paraíso e nós devemos tudo ao senhor!
Pasmo, o vereador voltou ao plenário e pediu a palavra para uma comunicação urgente. Queria agradecer ao prefeito, que atendendo ao pedido de um feroz adversário, mandara urbanizar o largo da Purificação, no subúrbio tal, um dos grotões mais tradicionais da oposição.
Acontece que o prefeito costumava ouvir os debates da Câmara Municipal pela rádio Roquete Pinto, que por sinal tinha excelente programação, na qual o único desastre era justamente a transmissão dos debates daquilo que os jornais chamavam de "edilidade", ou seja, dos vereadores.
O prefeito também ficou pasmo. Como? Ele mandara atender a um requerimento daquele idiota, daquele cafajeste da oposição, que todos os dias o ameaçava com comissões de inquérito, que já pedira o seu impeachment por causa de prestação de contas do exercício passado?
Pegou o telefone e ligou para a Secretaria de Obras, queria falar com o diretor do Serviço de Parques e Jardins. Que história era aquela, gastar o dinheiro da administração atendendo a um vereador que o chamava de incompetente, venal e corrupto? Cabeças iriam rolar!
O secretário pediu cinco minutos para se informar sobre o caso. E cinco minutos após retomou com a informação: houvera um curto-circuito na papelada, o largo que deveria ser urbanizado era o da Consolação, erro idiota, de escriturários subalternos.
O prefeito exigiu que o mal fosse reparado. E dois dias após, a velhinha foi novamente à Câmara Municipal, chamou o vereador e contou-lhe a história:
- Eu estava dormindo, doutor, quando ouvi o barulho dos caminhões chegando. Era madrugada. Desceu uma porção de homens, tudo da prefeitura. Arrebentaram a canalização da vala do esgoto, enrolaram novamente os tapetes de grama, tiraram os postes de luz e até o coreto saiu inteiro, foi levado por uma jamanta enorme para não sei onde. O largo ficou como estava. E como choveu durante a noite, a lama voltou a rolar, a gente nem pode abrir a porta da casa, está tudo um inferno.
O vereador abanou os braços:
- E o que a senhora quer que eu faça?
- Nada não, senhor. Eu só queria que o senhor me explicasse tudo isso.


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