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BERNARDO CARVALHO
Mostrar e esconder
"Ken Park", filme de
Larry Clark e Ed Lachman exibido na Mostra de São
Paulo e com estréia prevista para
janeiro, começa com um adolescente que estoura os miolos com
um revólver numa pista de skate.
A violência explícita da cena remete, por oposição, aos filmes de
Robert Bresson (1901-99).
Em Bresson, os adolescentes
também se suicidam, mas o espectador só fica sabendo disso por
indícios. Em "Mochette" ("Mochette, a Virgem Possuída", 1967),
a protagonista rola morro abaixo
e termina, depois de três tentativas frustradas, caindo no rio. Seu
suicídio é deduzido pelo som de
um corpo que cai na água, fora de
campo. Em "Une Femme Douce"
(Uma Mulher Suave, 1969), o suicídio da moça é intuído pela
echarpe que desce, ao sabor do
vento, pela fachada do prédio de
onde ela se atirou.
Larry Clark tem um fascínio voyeurístico pelos adolescentes, que
já era ostensivo em "Kids" (1995)
e deve deixar de cabelo em pé a
América puritana, hoje tão obcecada pela pedofilia. Bresson também tinha uma atração manifesta pela beleza dos jovens, tanto
que logo deixou de lado os atores
e, assim como Clark, passou a trabalhar com desconhecidos que
encontrava na rua, ou que via em
capas de revista. Ao contrário de
Clark, porém, o diretor francês os
mostrava ao mesmo tempo que os
escondia.
Os jovens de Bresson eram mais
adultos que os de Clark. Em geral,
não seguiram a carreira de ator.
O cineasta, que preferia chamá-los de "modelos", achava isso natural. Sua teoria, que está exposta
no excepcional "Notas sobre o Cinematógrafo", é de um realismo
peculiar: define o "modelo", por
oposição ao ator, como "um corpo e uma alma inimitáveis". Seria, portanto, um absurdo que fizessem um segundo filme: "É impossível, pois seria como se a mesma pessoa representasse uma outra".
Por muito tempo pensei em fazer uma reportagem com os "modelos" de Bresson, descobrir o que
se tornaram na meia-idade. Em
1989, como estava indo a Paris,
consegui o telefone do cineasta e
aproveitei para tentar marcar um
encontro com ele, a despeito do
que me diziam: que era uma coisa louca, não adiantava, ele não
dava entrevistas. Liguei antes de
sair de São Paulo. Para minha
surpresa, ele mesmo atendeu e,
muito simpático, concordou em
me receber. Pediu que eu lhe telefonasse de novo ao chegar a Paris.
Bresson não filmava fazia anos,
desde "L'Argent" ("O Dinheiro",
1983). Seu projeto de adaptar o livro do Gênesis vinha sendo postergado desde 1963 -agora,
Martin Scorsese estava disposto a
ajudá-lo a viabilizar a produção.
Liguei assim que pus os pés na cidade. Uma mulher atendeu. Era
uma voz jovem. Queria saber
quem eu era e o que queria: "Deve
haver algum engano. Meu marido não dá entrevistas". Eu insisti,
disse que tinha vindo só para isso,
e ela me passou o cineasta.
Bresson morava num prédio no
Quai de Bourbon, na ponta da Ile
de St. Louis, onde Cortázar ambientou a ação do conto "Las Babas del Diablo", que deu origem a
"Blow Up", de Antonioni. Quando toquei o interfone, pediu que
eu subisse ao terceiro andar. A
porta estava entreaberta e ele me
esperava no interior de uma sala
clara, cujas janelas davam para o
Sena.
Sentamos um diante do outro.
Perguntei se podíamos começar e
ele disse que sim. Liguei o gravador sobre uma mesa de centro entre nós dois. Fiz a primeira pergunta, sobre o projeto de filmar o
Gênesis. Resposta: "É um projeto
completamente louco. E as coisas
loucas sempre acabam se realizando".
Bresson respondeu a mais três
ou quatro perguntas, sempre de
maneira esquiva. Sobre os filmes
recentes, por exemplo: "Faz tempo que não vou ao cinema. Não
posso dizer de outra forma". Ou
sobre a pintura, que ele praticava
antes de se tornar cineasta: "Ainda sou pintor. Pinto com os olhos.
Prefiro não falar de pintura. Daria um livro".
De repente, parou de falar e
olhou para o gravador. "O que é
isso? Eu não dou entrevista com
gravador." Me comprometi a desligá-lo e continuar anotando à
mão. Ele concordou a contragosto. Respondeu a mais umas tantas perguntas e aí interrompeu
uma frase no meio. Olhava fixamente para a porta de entrada
entreaberta. Ao me virar, tive a
impressão de entrever a mão de
uma mulher na maçaneta. Só a
mão, por um instante, um típico
plano bressoniano. Ele se levantou e foi até lá. Ouvi sussurros
atrás da porta. Voltou depois de
uns minutos, respondeu a mais
duas perguntas e foi novamente
interrompido, agora pela voz jovial da mulher que, sem se mostrar, o chamava pela fresta da
porta entreaberta: "Bebért".
Quando voltou, já não respondia às minhas perguntas. Disse
que não podíamos prosseguir. Tinha sido um mal-entendido. Saí
frustrado, ainda sem entender
que toda aquela "mise-en-scène"
de dar e tomar era no fundo natural, tinha a ver com os próprios
filmes. Atravessei a rua e liguei o
gravador com o que me restava
da malfadada entrevista. Minutos depois, uma mulher elegante,
pelo menos 30 anos mais jovem
do que o cineasta, saiu do prédio.
Entrou num carro, deu a partida
e foi embora, enquanto eu ouvia
de novo, entre as poucas respostas
que tinha gravado: "As coisas
loucas sempre acabam se realizando". Nem sempre.
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