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São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2003

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Takes impressionistas

Luiz Carlos Murauskas/Folha Imagem
O cineasta José Agrippino, 66, em sua casa no último sábado



Projeto de psicanalista põe Super-8 de volta nas mãos de José Agrippino de Paula


JULIANA MONACHESI
FREE-LANCE PARA A FOLHA

José Agrippino de Paula, 66, recebeu de presente no sábado passado, em sua casa no município de Embu, uma câmera Super-8 mm de marca Canon 814, igual à utilizada por sua ex-mulher Maria Esther Stockler, com quem realizou a maioria de seus curtas na década de 70, em estadias na África e na Bahia.
O cineasta e escritor foi figura-chave da contracultura brasileira nos anos 60 e 70 (destacadamente no tropicalismo e no experimentalismo superoitista). Mas um lapso de 20 anos separa a estrela da literatura beat paulista e autor do ousado "Hitler, Terceiro Mundo" (1968) do José Agrippino de hoje, que vive sozinho em uma pequena casa com objetos recobertos de pó, onde, segundo os vizinhos, as visitas rareiam e quase nunca a janela é vista aberta.
Ele voltou ao cenário cultural dois anos atrás, quando a editora Papagaio relançou seu livro "PanAmérica" (1967), uma epopéia em que retrata o cotidiano de um diretor de cinema que está realizando uma superprodução hollywoodiana baseada na Bíblia.
De certo modo, Agrippino protagoniza desde sábado uma epopéia pessoal, uma vez que o momento da entrega da câmera constituiu o primeiro take do filme "Passeios no Recanto Silvestre", dirigido pela psicanalista Miriam Chnaiderman, que concebeu o projeto com uma equipe formada por outros três psicanalistas e pelo professor de cinema da USP Rubens Machado.
Trata-se de um filme dentro de outro, um de autoria dele (o filme que Agrippino vai fazer em Super-8 no Recanto Silvestre, local no Embu, Grande SP, onde indicou que pretende filmar) e outro realizado em co-autoria com ele, diz Chnaiderman, "porque o registro digital do processo dele em Super-8 é decidido conjuntamente". Uma das condições que ele impôs foi que não registrassem ele filmando.
Apesar da esquizofrenia, que foi diagnosticada em 1980 e provavelmente ajuda a explicar o silêncio criativo desde então, Agrippino "prima pela lucidez e pela coerência", afirma David Calderoni, psicanalista que integra a equipe. "Essa tem sido sua atitude desde nosso primeiro contato. Foi ele que quis fazer um filme próprio, não foi idéia nossa", conta.
A diretora, que já fez os filmes "Dizem que Sou Louco" (1994) e "Artesãos da Morte" (2001), caracteriza o projeto como uma forma de reposicionar Agrippino na cultura como "um ator social de sua própria história. No "Artesãos da Morte" [documentário com depoimentos de funcionários de cemitérios e necrotérios] dei voz àqueles que no cotidiano tocam o cadáver. E descrevem como são discriminados. Nesse filme também se trata de dar voz a alguém que vinha estando silencioso".
Sorridente ao receber a câmera, que imediatamente reconheceu ("É essa mesmo!"), Agrippino falou à Folha sobre a expectativa em voltar a filmar: "Eu sempre estou interessado nesse aspecto de tirar takes impressionistas. Por exemplo, eu estou passeando em um lugar e posso talvez fixar uma árvore que parece interessante na forma, que é impressionista no sentido de que você atinge um certo grau de contemplação".
Durante duas horas no último sábado, dirigindo-se à câmera digital, ele falou sobre seus filmes e sua vida. Essa estética impressionista foi acentuada por ele ao narrar momentos em que filmou, por exemplo, um peixe sendo defumado, ou "mulheres pilando milho e cantando cantigas para acertar o ritmo". Relembrou ainda de ter filmado um "negro de cavanhaque sentado perto de um abismo": "Estou filmando e aquilo tem um significado, ele tem uma carta para um coiote. Nosso entendimento é pela metade, mas é interessante. Então observo que na areia, onde ficarem as marcas das patas, são as respostas do coiote para o negro".
Muitas vezes, ele colocou no presente acontecimentos de décadas atrás. "O que fica claro na fala do Zé Agrippino é que ele vive um outro tempo, que não é o nosso. Que nome isso tem não nos interessa. O que nos interessa é o mergulho em mundos desconhecidos. O que move o Zé Agrippino a viver naquela casa, daquele jeito, nos escapa. E poder suportar o enigmático é parte de nosso trabalho cotidiano", diz a diretora.


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