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LITERATURA/"RETRATO DE PORTINARI"
Estilo humilde provoca inversão do escritor em pintor
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
É biscoito fino e delicioso este "Retrato de Portinari", de
Antonio Callado (1917-1997), com
quadros, desenhos e fotos, sobre o
grande pintor Portinari (1903-62),
Candinho, como poetou Vinicius
de Moraes: "Ouviu, Candinho?".
Antonio Callado representa o
que há de mais elegante e profundo no jornalismo e na literatura.
Se foi melhor jornalista do que romancista, isso não importa diante
do seguinte: trata-se de um exemplo brasileiro bacana de homem e
escritor. Ele foi o único interlocutor com quem o ilustre caipira de
Brodósqui se abriu para falar de
sua vida: "Sabe por que eu pinto
meninos em gangorra e balanço?
Para botá-los no ar, feito anjos".
Neste livro humilde à Manuel
Bandeira, temos uma engenhosa
inversão: o escritor vira pintor, e
vice-versa. É como se Portinari estivesse discorrendo sobre a filosofia do artista no Brasil. "Outro dia
o Gilberto Freyre estranhou que
eu, pintando no Brasil, fizesse um
Jesus loiro em Batatais".
Antonio Callado nasceu em Niterói, atravessou de barca para o
Rio, e daí para o mundo. O seu comovente livro sobre o Vietnã
(Glauber Rocha dizia-o melhor
que o "Apocalipse Now" de Coppola) merece ser urgentemente
editado nestes tempos bicudos de
Bush aprontando no Iraque.
Ainda não foi devidamente estudado o caráter específico e singular do anti-imperialismo anglosaxônico de Antonio Callado. Em
São Paulo, década de 70, noite jubilosa, jantei com ele e sua mulher
Ana Arruda num restaurante da
rua Martin Francisco, convidado
pelo meu amigo e crítico literário
Davi Arrigucci Jr.
Do ponto de vista psicológico e
artístico, ele era muito parecido
com André Malraux, o francês
que depois de Baudelaire era o
craque na crítica das artes plásticas, segundo Jean-Luc Godard.
Callado sobressai no jornalismo
brasileiro por escrever um texto
que é raro encontrar por aí: a reportagem em que a sacada estética é um modo de aprender a realidade. Por isso, suas magníficas reportagens despertam sempre interesse em qualquer atualidade.
"Portinari nunca pintou um nu
em sua vida", escreve o jornalista
que nunca teve em sua prosa nada
de misógino. Sabe-se que ateu e
comunista, Portinari não por acaso foi amigo do romancista Graciliano Ramos, de quem pintou sua
nobre testa.
Antonio Callado num capítulo,
"A Cela sem Prece", vai fundo ao
observar nossa familiaridade com
os santos e os deuses: "O artista
brasileiro não pode se furtar à
pressão do religioso".
É célebre o diálogo de Portinari
com um duque inglês em sua exposição de 1946 em Paris. O duque estava a fim de comprar uns
quadros:
"-Não há flores?
-Flores, não, disse o pintor, só
tenho miséria".
A interpretação de Callado é sutil: Portinari pintou a história e
protestou que o intelectual brasileiro não tem intimidade com a
natureza dos trópicos e a realidade do país. E, até hoje, continua
desconectado da natureza que o
circunda. "Portinari sai em busca
do sol que ainda está por trás do
monte".
E o sol é o do povo.
Retrato de Portinari
Autor: Antonio Callado
Editora: Jorge Zahar Editor
Quanto: R$ 31 (199 págs.)
Gilberto Felisberto Vasconcellos é
professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa
Amarela).
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