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São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2003

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LITERATURA/"RETRATO DE PORTINARI"

Estilo humilde provoca inversão do escritor em pintor

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

É biscoito fino e delicioso este "Retrato de Portinari", de Antonio Callado (1917-1997), com quadros, desenhos e fotos, sobre o grande pintor Portinari (1903-62), Candinho, como poetou Vinicius de Moraes: "Ouviu, Candinho?".
Antonio Callado representa o que há de mais elegante e profundo no jornalismo e na literatura. Se foi melhor jornalista do que romancista, isso não importa diante do seguinte: trata-se de um exemplo brasileiro bacana de homem e escritor. Ele foi o único interlocutor com quem o ilustre caipira de Brodósqui se abriu para falar de sua vida: "Sabe por que eu pinto meninos em gangorra e balanço? Para botá-los no ar, feito anjos".
Neste livro humilde à Manuel Bandeira, temos uma engenhosa inversão: o escritor vira pintor, e vice-versa. É como se Portinari estivesse discorrendo sobre a filosofia do artista no Brasil. "Outro dia o Gilberto Freyre estranhou que eu, pintando no Brasil, fizesse um Jesus loiro em Batatais".
Antonio Callado nasceu em Niterói, atravessou de barca para o Rio, e daí para o mundo. O seu comovente livro sobre o Vietnã (Glauber Rocha dizia-o melhor que o "Apocalipse Now" de Coppola) merece ser urgentemente editado nestes tempos bicudos de Bush aprontando no Iraque.
Ainda não foi devidamente estudado o caráter específico e singular do anti-imperialismo anglosaxônico de Antonio Callado. Em São Paulo, década de 70, noite jubilosa, jantei com ele e sua mulher Ana Arruda num restaurante da rua Martin Francisco, convidado pelo meu amigo e crítico literário Davi Arrigucci Jr.
Do ponto de vista psicológico e artístico, ele era muito parecido com André Malraux, o francês que depois de Baudelaire era o craque na crítica das artes plásticas, segundo Jean-Luc Godard.
Callado sobressai no jornalismo brasileiro por escrever um texto que é raro encontrar por aí: a reportagem em que a sacada estética é um modo de aprender a realidade. Por isso, suas magníficas reportagens despertam sempre interesse em qualquer atualidade.
"Portinari nunca pintou um nu em sua vida", escreve o jornalista que nunca teve em sua prosa nada de misógino. Sabe-se que ateu e comunista, Portinari não por acaso foi amigo do romancista Graciliano Ramos, de quem pintou sua nobre testa.
Antonio Callado num capítulo, "A Cela sem Prece", vai fundo ao observar nossa familiaridade com os santos e os deuses: "O artista brasileiro não pode se furtar à pressão do religioso".
É célebre o diálogo de Portinari com um duque inglês em sua exposição de 1946 em Paris. O duque estava a fim de comprar uns quadros:
"-Não há flores?
-Flores, não, disse o pintor, só tenho miséria".
A interpretação de Callado é sutil: Portinari pintou a história e protestou que o intelectual brasileiro não tem intimidade com a natureza dos trópicos e a realidade do país. E, até hoje, continua desconectado da natureza que o circunda. "Portinari sai em busca do sol que ainda está por trás do monte".
E o sol é o do povo.


Retrato de Portinari
    
Autor: Antonio Callado Editora: Jorge Zahar Editor Quanto: R$ 31 (199 págs.)


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa Amarela).


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