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São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2003

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MARCELO COELHO

Narrativas que desconhecemos

A foto mostra apenas quatro camas, ou melhor, quatro colchões, cada um no seu estado próprio de abandono. O primeiro até que se aguenta, côncavo como uma rede, o tecido do forro bem esticado: um pouco mais e poderia levantar-se sozinho. No segundo, vemos uma grande depressão no centro, de onde surge um tanto de tecido esfiapado. Mais perto da janela, o terceiro colchão parece um tubo, com a parte de baixo, onde ficam os pés, mais alta, imitando a forma de um sarcófago.
O último colchão, no fundo da foto, parece uma pessoa que nos desse as costas, deixando o joelho um pouco levantado, sem se importar com nossa presença ali.
Estamos vendo o quarto vazio de um hospital psiquiátrico, e é como se cada colchão guardasse a história de seu paciente, a individualidade de uma doença, o registro de um sofrimento.
A foto, de Mariana Siqueira, está no Centro Universitário Maria Antônia, dentro da exposição "Visualidade Nascente". Ao lado, o "close" de um interno, deitado na cama, poderia ser apenas um lugar-comum -a habitual foto "dramática" de alguém que sofre, mendigo, prisioneiro ou louco. Mas o que mais chama a atenção no retrato não é o rosto do doente, e sim suas mãos; os dedos estão entrelaçados, como se o homem estivesse rezando.
Sem alívio, porém; na cama de ferro branco, as mãos cruzadas parecem ser as de alguém que está preso há anos -e que há anos é seu próprio carcereiro.
Também uma cama vazia, em tons pardos, "sujos", mas atravessada por um raio de sol, é o que vemos no pequeno quadro de Adams Carvalho, na mesma exposição. Pintura "realista", sem dúvida: nos outros quadros, vemos claramente, mas atrás de algum véu de umidade, pedaços de poltrona, a luz de lâmpadas fluorescentes, trechos de assoalho.
A palavra mais correta seria "pisos", e não "assoalho": esses tipos modernos de piso, paviflex, carpetes de plástico lavável, com um brilho meio de encerado e oleoso, em que não os pés, mas os olhos escorregam: salas de espera, corredores de hospital.
Patrícia Osses tira fotos de casas antigas de São Paulo em processo de restauração ou de ruína: as casas aparecem cobertas de véus, como se estivessem de luto. A artista expõe essas fotos em pares, unindo as casas em ângulos estranhos, em junções de irmãs xifópagas.
Lembrei-me de um poema de Emily Dickinson (1830-1886), que começa com a simplicidade de uma notícia de jornal: "Teve uma Morte, na Casa em Frente/ Hoje mesmo, no mais tardar;/ sei disso pelo ar entorpecido/ que essas Casas sempre têm".
A autora assiste em seguida a toda a movimentação: o vaivém dos vizinhos, o médico indo embora, a chegada do sacerdote (que caminha rigidamente, "como se a Casa fosse dele"), e do dono do armarinho, que irá fornecer os tecidos apropriados para o luto.
"Uma janela se abre como uma Vagem", diz Emily Dickinson, "abrupta e mecanicamente", e de lá alguém joga um colchão. "As Crianças correm em volta/ perguntando-se se quem morreu -foi ali."
As notícias, conclui o poema, são fáceis de intuir quando se mora numa cidade do interior. Emily Dickinson, como se sabe, passou praticamente a vida inteira numa cidadezinha da Nova Inglaterra.
Mas o fato de morar numa cidade grande ou pequena talvez não seja tão importante; o poema também sugere que, diante de um evento trágico, diante daquilo que impõe o silêncio, alguns poucos indícios já dizem tudo, parecem quase estridentes.
Todo poeta, na verdade, está sempre "intuindo as notícias" sem muito esforço: para ele, o mundo inteiro é a Casa em frente, cujo andor ele bem conhece.
Acho muito bonitas as fotografias que justamente parecem trazer "notícias" de alguma situação sem nome, de uma casa silenciosa, de pessoas ignoradas. Em outra exposição, intitulada "Metacorpos" (Paço das Artes), vemos algumas fotos de Nan Goldin, que são como que instantâneos na vida de um casal. Mas toda a cotidianidade, todo o prosaísmo da vida doméstica desaparece; é como que cercado de silêncio.
As fotos pressupõem uma narrativa que desconhecemos. Numa delas, vemos "o torpor de Valérie depois do choro"; sem que essa legenda explique muita coisa para nós. Em outra -para voltar ao tema-, há apenas uma cama de casal vazia. Algo aconteceu; chegamos tarde demais para saber o quê.
A mostra "Metacorpos" não sugere, todavia, nada de muito fúnebre. Ao contrário, é a atividade incansável das células e das vísceras o que aparece numa das obras mais impressionantes da exposição, um vídeo da artista australiana Patricia Piccinini.
Feito de imagens manipuladas por computador, o vídeo retrata algo como um aquário de órgãos clonados para transplante. Uma coisa que não sabemos bem se é seio ou ânus aparece produzindo/expelindo, num meio líquido, incessantemente, regularmente, órgãos que poderiam ser o fígado, os rins ou as amídalas de alguma espécie animal aparentada à nossa.
É bem aterrorizante e, ao mesmo tempo, plácido, com um andante de Beethoven a servir de fundo musical.
Fiquei com essas imagens na cabeça porque recentemente fiz uma operação. Recebi agora o DVD com o registro dos, digamos, "melhores momentos" da coisa toda. É estranho ver-se por dentro, virado do avesso, e comentar tudo com o médico como se se tratasse do corpo de outra pessoa. Claro que não recomendo o DVD para pessoas de estômago sensível. Mas certamente esse foi um dos melhores filmes que já vi.


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