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MARCELO COELHO
Narrativas que desconhecemos
A foto mostra apenas quatro camas, ou melhor, quatro colchões, cada um no seu estado próprio de abandono. O primeiro até que se aguenta, côncavo como uma rede, o tecido do
forro bem esticado: um pouco
mais e poderia levantar-se sozinho. No segundo, vemos uma
grande depressão no centro, de
onde surge um tanto de tecido esfiapado. Mais perto da janela, o
terceiro colchão parece um tubo,
com a parte de baixo, onde ficam
os pés, mais alta, imitando a forma de um sarcófago.
O último colchão, no fundo da
foto, parece uma pessoa que nos
desse as costas, deixando o joelho
um pouco levantado, sem se importar com nossa presença ali.
Estamos vendo o quarto vazio
de um hospital psiquiátrico, e é
como se cada colchão guardasse a
história de seu paciente, a individualidade de uma doença, o registro de um sofrimento.
A foto, de Mariana Siqueira, está no Centro Universitário Maria
Antônia, dentro da exposição
"Visualidade Nascente". Ao lado,
o "close" de um interno, deitado
na cama, poderia ser apenas um
lugar-comum -a habitual foto
"dramática" de alguém que sofre,
mendigo, prisioneiro ou louco.
Mas o que mais chama a atenção
no retrato não é o rosto do doente,
e sim suas mãos; os dedos estão
entrelaçados, como se o homem
estivesse rezando.
Sem alívio, porém; na cama de
ferro branco, as mãos cruzadas
parecem ser as de alguém que está preso há anos -e que há anos
é seu próprio carcereiro.
Também uma cama vazia, em
tons pardos, "sujos", mas atravessada por um raio de sol, é o que
vemos no pequeno quadro de
Adams Carvalho, na mesma exposição. Pintura "realista", sem
dúvida: nos outros quadros, vemos claramente, mas atrás de algum véu de umidade, pedaços de
poltrona, a luz de lâmpadas fluorescentes, trechos de assoalho.
A palavra mais correta seria
"pisos", e não "assoalho": esses tipos modernos de piso, paviflex,
carpetes de plástico lavável, com
um brilho meio de encerado e
oleoso, em que não os pés, mas os
olhos escorregam: salas de espera,
corredores de hospital.
Patrícia Osses tira fotos de casas
antigas de São Paulo em processo
de restauração ou de ruína: as casas aparecem cobertas de véus,
como se estivessem de luto. A artista expõe essas fotos em pares,
unindo as casas em ângulos estranhos, em junções de irmãs xifópagas.
Lembrei-me de um poema de
Emily Dickinson (1830-1886), que
começa com a simplicidade de
uma notícia de jornal: "Teve uma
Morte, na Casa em Frente/ Hoje
mesmo, no mais tardar;/ sei disso
pelo ar entorpecido/ que essas Casas sempre têm".
A autora assiste em seguida a
toda a movimentação: o vaivém
dos vizinhos, o médico indo embora, a chegada do sacerdote (que
caminha rigidamente, "como se a
Casa fosse dele"), e do dono do armarinho, que irá fornecer os tecidos apropriados para o luto.
"Uma janela se abre como uma
Vagem", diz Emily Dickinson,
"abrupta e mecanicamente", e de
lá alguém joga um colchão. "As
Crianças correm em volta/ perguntando-se se quem morreu
-foi ali."
As notícias, conclui o poema,
são fáceis de intuir quando se mora numa cidade do interior.
Emily Dickinson, como se sabe,
passou praticamente a vida inteira numa cidadezinha da Nova
Inglaterra.
Mas o fato de morar numa cidade grande ou pequena talvez
não seja tão importante; o poema
também sugere que, diante de um
evento trágico, diante daquilo
que impõe o silêncio, alguns poucos indícios já dizem tudo, parecem quase estridentes.
Todo poeta, na verdade, está
sempre "intuindo as notícias"
sem muito esforço: para ele, o
mundo inteiro é a Casa em frente,
cujo andor ele bem conhece.
Acho muito bonitas as fotografias que justamente parecem trazer "notícias" de alguma situação
sem nome, de uma casa silenciosa, de pessoas ignoradas. Em outra exposição, intitulada "Metacorpos" (Paço das Artes), vemos
algumas fotos de Nan Goldin, que
são como que instantâneos na vida de um casal. Mas toda a cotidianidade, todo o prosaísmo da
vida doméstica desaparece; é como que cercado de silêncio.
As fotos pressupõem uma narrativa que desconhecemos. Numa
delas, vemos "o torpor de Valérie
depois do choro"; sem que essa legenda explique muita coisa para
nós. Em outra -para voltar ao
tema-, há apenas uma cama de
casal vazia. Algo aconteceu; chegamos tarde demais para saber o
quê.
A mostra "Metacorpos" não sugere, todavia, nada de muito fúnebre. Ao contrário, é a atividade
incansável das células e das vísceras o que aparece numa das obras
mais impressionantes da exposição, um vídeo da artista australiana Patricia Piccinini.
Feito de imagens manipuladas
por computador, o vídeo retrata
algo como um aquário de órgãos
clonados para transplante. Uma
coisa que não sabemos bem se é
seio ou ânus aparece produzindo/expelindo, num meio líquido,
incessantemente, regularmente,
órgãos que poderiam ser o fígado,
os rins ou as amídalas de alguma
espécie animal aparentada à nossa.
É bem aterrorizante e, ao mesmo tempo, plácido, com um andante de Beethoven a servir de
fundo musical.
Fiquei com essas imagens na
cabeça porque recentemente fiz
uma operação. Recebi agora o
DVD com o registro dos, digamos,
"melhores momentos" da coisa
toda. É estranho ver-se por dentro, virado do avesso, e comentar
tudo com o médico como se se tratasse do corpo de outra pessoa.
Claro que não recomendo o DVD
para pessoas de estômago sensível. Mas certamente esse foi um
dos melhores filmes que já vi.
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