São Paulo, quinta-feira, 26 de novembro de 2009

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NINA HORTA

A comida e a arte


Ir ao mercado, comprar uma barriga de porco, fazer torresmos com a pele, fazer espuma com a gordura


FOI MARIA Helena, minha cunhada, quem me recomendou um livro sensacional sobre o Ferran Adrià. Dir-se-ia um livro de arte. Capa grossa, páginas lustrosas.
Chama-se "Food for Thought, Thought for Food", editado por Richard Hamilton e Vicente Todoli.
Na verdade, a ideia de fazê-lo deve ter vindo da necessidade de explicar a participação de Adrià na Documenta de Kassel, de como se teve a ideia, de como se conseguiu torná-la viável. Como resolveram fazer do próprio restaurante um pavilhão de Kassel e, todos os dias, duas pessoas eram escolhidas para viajar até Cala Montjoi. Tudo fazia parte da experiência estética. O lugar, o cheiro do mar, a esplêndida cozinha, a brigada, o cozinheiro.
São textos e fotos. Muitas fotos e reproduções de artistas que de algum modo usaram a comida como tema. No primeiro capítulo, todos os pratos do elBulli, em pequenas fotos, de 1987 a 2007. Muitos textos refletindo sobre sua comida. "ElBul-li é uma trupe de atores atuando o melhor possível, escrevendo as peças e as desenvolvendo no palco soberbamente, no seu próprio teatro. A performance da apresentação da obra de arte ao auditório é tão trabalhosa como a atividade dos bastidores na cozinha..."
Depois, o laboratório. Nele tudo se transforma, há uma atmosfera de dividir, compartilhar, nada de segredos. Ir ao mercado, comprar uma barriga de porco, derretê-la no micro-ondas, fazer torresmos com a pele, fazer espuma com a gordura, fritar um ovo e comer com a espuma e com o torresmo. Ficou bom? Vai para o papel, tudo anotado, e dezenas de outras experiências se acumulam naquele mesmo dia.
No capítulo dois, a participação de Ferran na Documenta. As duas pessoas que eram escolhidas para ir comer lá, geralmente pessoas virgens de qualquer contato com gastronomia, mas interessadas ou especialistas em arte. Ferran pediu que esses participantes de sua obra, ou melhor, de sua comida, escrevessem sobre a experiência... Vou fazer um pot-pourri para não ficar repetitivo.
"Documenta abriu caminhos, como sempre, discutindo comida e arte. Pareceu-me a volta de alguma coisa reprimida; comida e imaginação, a representação da emoção e do objeto desejado... Um encontro especial com cor, forma, consistência, ingredientes desconhecidos, assim como combinações jamais vistas e um fluxo ininterrupto de imagens estéticas e experiências de percepção. É Ferran Adrià um artista? O objetivo da Documenta é fazer as pessoas olharem e escutarem outra vez, terem uma experiência sensorial que agregue diferentes linguagens artísticas, diferentes culturas, diferentes formas e conteúdos. E isso só pode ser encontrado no elBulli.
O jantar reforçou uma convicção profunda de que nossa visão de arte é muito limitada. Artistas podem vir de qualquer lugar e de qualquer campo. Arte é aquilo que é mais compartilhado no mundo enquanto cria emoção. Pode vir também de um restaurante escondido numa pequena baía na costa catalã. É difícil de verdade impactar e inovar num campo no qual a humanidade vem praticando por milhares de anos.
Imagine, bebemos uma lebre e mastigamos um quadrado de leite."
Um meninote que não tinha ideia do que o esperava: "O jantar no elBulli foi uma experiência e arte. Eu adorei demais e vomitei".
E o último capítulo trata de uma análise da evolução do restaurante, da filosofia do elBulli, da cronologia e traz um índice para todos os pratos feitos até hoje.
É um belo livro, não para ser olhado, assim de relance, mas para refletir sobre a comida, realmente. Para mim foi bom, me interrogo sempre qual a função da comida do Adrià e fiquei satisfeita com a ideia de que pode ser arte ou de que é arte, continuando a ser comida.


FOOD FOR THOUGHT, THOUGHT FOR FOOD

Autor: Vicent Todoli
Editora: Actar (importado)
Quanto: US$ 29,67 (cerca de R$ 52, mais taxas, na Amazon.com; 400 págs.)


ninahorta@uol.com.br

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