São Paulo, quinta-feira, 26 de dezembro de 2002

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ISABELLE HUPPERT DÁ VIDA AO DESESPERO EM "4.48 PSYCHOSE"

Teatro infinito

Divulgação
A atriz Isabelle Huppert, que permanece a maior parte do tempo estática em "4.48 Psychose"



Último texto da inglesa Sarah Kane, montado em Paris por Claude Régy, pode vir a São Paulo


ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

A atriz Isabelle Huppert está no centro da cena. Por quase duas horas ela permanecerá ali, praticamente imóvel para a encenação de "4.48 Psychose", da inglesa Sarah Kane, dirigida em Paris pelo veterano Claude Régy.
Quase no final, Huppert virará o rosto pela primeira e última vez. Toda a maravilha desse espetáculo virá do texto desesperado de Sarah Kane, da força da atriz em exprimi-lo apenas pela entonação e as pequenas flexões do rosto e da capacidade de Régy de transmitir ao público o que há de mais difícil: os movimentos vertiginosos de uma consciência lançada nos limites de si mesma.
Quando o espetáculo termina, é como se um furacão tivesse passado pela sala. A quinta e última peça de Sarah Kane não é apenas o monólogo de uma personagem deprimida, à beira da loucura: é a erupção de vários estados mentais e físicos por meio da palavra, um discurso fragmentado e inquietante que coloca em xeque todas as noções de normalidade, de conforto e de verdade.
Sarah Kane é um acontecimento sem par na dramaturgia atual. "Sua escrita é como um rock. Numa tonalidade elisabetana, às vezes. Ou bíblica", escreve Régy em seu livro mais recente, "L'État d'Incertitude" (O Estado de Incerteza, 2002).
"4.48 Psychose" fez sensação em Paris no mês passado. O espetáculo consolidou Isabelle Huppert, 48, estrela dos filmes de Claude Chabrol e Godard, como a principal atriz francesa em atividade.
Os brasileiros talvez tenham a oportunidade rara de conhecer simultaneamente o teatro de Sarah Kane, a interpretação de Huppert e a encenação de Régy em fevereiro, em São Paulo, para onde está programada a apresentação de "4.48 Psychose", no teatro do Sesc.
Se for confirmado o evento, não será a primeira vez que Régy, 78, um dos mais renomados diretores europeus, vem ao Brasil. Em 1970, ele montou com atores brasileiros, no Rio de Janeiro, "A Mãe", do polonês Stanislaw Witkiewicz. Para a apresentação em São Paulo, o diretor está se batendo para que não haja legendas com a tradução. "É um absurdo me pedirem isso", diz. As legendas quebrariam toda a concentração necessária do espectador sobre o corpo imóvel de Huppert.
A seguir, o diretor fala de sua encenação de "4.48 Psychose", título por si só enigmático, que talvez se refira à hora marcada de um suicídio, que Sarah Kane de fato cometeu em 1999, aos 28 anos. Leia alguns trechos da entrevista.
 

Folha - Como o sr. chegou a essa concepção de uma "mobilidade imóvel" de "4.48 Psychose"?
Claude Régy -
Na verdade é alguma coisa que eu tenho trabalhado já há muitos anos, desde que montei em 1968 "A Amante Inglesa", um texto de Marguerite Duras. Na época descobrimos que o texto, se o interpretamos e o compreendemos de uma certa maneira, é um elemento dramático em si mesmo e muito mais forte do que os meios técnicos das encenações habituais.
Eu trabalho não com o movimento e a demonstração, mas com a interiorização do texto e com o intuito de liberar uma coisa essencial, que os homens de teatro curiosamente parecem ignorar, que é o fato de o escritor investir enormemente o seu próprio inconsciente na peça.
Encenar um texto sem se dar conta dessa parte essencial -a massa do inconsciente de onde ele vem e que ele está destinado a exprimir- é com certeza se privar de quase todas as virtudes da escrita.
A encenação habitual e a interpretação dos atores não gratificam o texto. Ao contrário, eles costumam destruir a escrita. Barthes dizia uma frase que eu gosto muito: não se deve decorar o texto, é preciso ilimitar a linguagem.
Sarah Kane, em suas últimas peças, inventou um teatro absolutamente abstrato, não-realista. São peças que não têm apenas um sentido, que não querem dizer uma verdade, mas abrem caminhos para que encontremos em nós e no exterior uma multiplicidade de sentidos sobre cada coisa experimentada ou expressa.

Folha - Huppert move levemente, às vezes, as mãos e os braços. E também chora, provocando o movimento de lágrimas sobre o rosto. Esses pequenos movimentos foram previstos?
Régy -
Não, eu sempre me abstenho de definir, porque penso profundamente que esse é o método ruim de direção. Não é preciso definir, é preciso ser humilde. É preciso pensar que a passividade é muito mais rica e criadora do que a atividade, que é forçosamente redutora. Se as lágrimas têm que cair, que elas caiam. Só que elas colocam um problema, pois uma das primeiras frases do texto diz: "Eu era capaz de chorar, agora estou para além das lágrimas". À medida que as representações se multiplicam, há menos lágrimas no espetáculo. Penso que isso é melhor. Mas, se as lágrimas vierem, é porque elas chegam de algo instintivo e profundo. Em nome da razão eu não tenho direito de ir contra o animal que as produz.

Folha - A partir dos filmes que Isabelle Huppert fez, ela dá a impressão de ser uma atriz sobretudo cerebral. O sr. acha que a maneira racional e construtiva como ela trabalha ajuda a dar solidez ao espetáculo, que lida com camadas pouco palpáveis do inconsciente?
Régy -
Não estou de acordo com você. É certo que a lucidez e a inteligência são características muito vivas nela, o que é sempre precioso. Mas, ao mesmo tempo, ela tem um elemento instintual importante. O que ela faz de belo é se deixar abandonar bastante ao mesmo tempo em que está completamente controlada. Ela tem um domínio grande de si própria e uma perda de limites que remete ao infinito.
Huppert tem uma energia e uma força fora do comum. Essa força ela passa ao público e faz com que o texto seja realmente transmitido, exceto para aqueles que fecham as suas portas.

Folha - O sr. escreve que, no teatro, o que importa não é dizer ou ouvir o texto, mas "trabalhar para que ele faça ver". O que interessa ver em "4.48 Psychose"? A loucura?
Régy -
Ela não está louca de fato. Diz várias vezes: eu não sou doente. E diz, por outro lado: a insanidade crônica dos sãos de espírito. Ela está talvez em depressão. Mas a depressão é causada por coisas que estão no mundo. E sua lucidez sobre o mundo e si mesma é perfeita. Ela fala desde um lugar que eu chamaria de "interzona", um espaço que está em comunicação com zonas conhecidas, mas que até o momento é uma área totalmente ignorada por nós, capaz de reunir os contrários.
Ela diz: "Eu não quero viver". Três linhas depois, diz: "Eu não quero morrer". Onde, então, situá-la, se ela não quer viver nem morrer? Ela não é também nem homem nem mulher: é hermafrodita. Ela diz que a doença faz com que não haja mais distinção entre o seu corpo e o resto do mundo. Ela está num universo que escapa completamente aos nossos hábitos ditos racionais.


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