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ISABELLE HUPPERT DÁ VIDA AO DESESPERO EM "4.48 PSYCHOSE"
Teatro infinito
Divulgação
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A atriz Isabelle Huppert, que permanece a maior parte do tempo estática em "4.48 Psychose" |
Último texto da inglesa Sarah Kane, montado em Paris por Claude Régy, pode vir
a São Paulo
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ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
A atriz Isabelle Huppert está no
centro da cena. Por quase duas
horas ela permanecerá ali, praticamente imóvel para a encenação
de "4.48 Psychose", da inglesa Sarah Kane, dirigida em Paris pelo
veterano Claude Régy.
Quase no final, Huppert virará o
rosto pela primeira e última vez.
Toda a maravilha desse espetáculo virá do texto desesperado de
Sarah Kane, da força da atriz em
exprimi-lo apenas pela entonação
e as pequenas flexões do rosto e
da capacidade de Régy de transmitir ao público o que há de mais
difícil: os movimentos vertiginosos de uma consciência lançada
nos limites de si mesma.
Quando o espetáculo termina, é
como se um furacão tivesse passado pela sala. A quinta e última peça de Sarah Kane não é apenas o
monólogo de uma personagem
deprimida, à beira da loucura: é a
erupção de vários estados mentais e físicos por meio da palavra,
um discurso fragmentado e inquietante que coloca em xeque todas as noções de normalidade, de
conforto e de verdade.
Sarah Kane é um acontecimento sem par na dramaturgia atual.
"Sua escrita é como um rock. Numa tonalidade elisabetana, às vezes. Ou bíblica", escreve Régy em
seu livro mais recente, "L'État
d'Incertitude" (O Estado de Incerteza, 2002).
"4.48 Psychose" fez sensação
em Paris no mês passado. O espetáculo consolidou Isabelle Huppert, 48, estrela dos filmes de
Claude Chabrol e Godard, como a
principal atriz francesa em atividade.
Os brasileiros talvez tenham a
oportunidade rara de conhecer simultaneamente o teatro de Sarah
Kane, a interpretação de Huppert
e a encenação de Régy em fevereiro, em São Paulo, para onde está
programada a apresentação de
"4.48 Psychose", no teatro do Sesc.
Se for confirmado o evento, não
será a primeira vez que Régy, 78,
um dos mais renomados diretores europeus, vem ao Brasil. Em
1970, ele montou com atores brasileiros, no Rio de Janeiro, "A
Mãe", do polonês Stanislaw Witkiewicz. Para a apresentação em
São Paulo, o diretor está se batendo para que não haja legendas
com a tradução. "É um absurdo
me pedirem isso", diz. As legendas quebrariam toda a concentração necessária do espectador sobre o corpo imóvel de Huppert.
A seguir, o diretor fala de sua
encenação de "4.48 Psychose", título por si só enigmático, que talvez se refira à hora marcada de
um suicídio, que Sarah Kane de
fato cometeu em 1999, aos 28
anos. Leia alguns trechos da entrevista.
Folha - Como o sr. chegou a essa
concepção de uma "mobilidade
imóvel" de "4.48 Psychose"?
Claude Régy - Na verdade é alguma coisa que eu tenho trabalhado
já há muitos anos, desde que
montei em 1968 "A Amante Inglesa", um texto de Marguerite Duras. Na época descobrimos que o
texto, se o interpretamos e o compreendemos de uma certa maneira, é um elemento dramático em
si mesmo e muito mais forte do
que os meios técnicos das encenações habituais.
Eu trabalho não com o movimento e a demonstração, mas
com a interiorização do texto e
com o intuito de liberar uma coisa
essencial, que os homens de teatro curiosamente parecem ignorar, que é o fato de o escritor investir enormemente o seu próprio inconsciente na peça.
Encenar um texto sem se dar
conta dessa parte essencial -a
massa do inconsciente de onde
ele vem e que ele está destinado a
exprimir- é com certeza se privar de quase todas as virtudes da
escrita.
A encenação habitual e a interpretação dos atores não gratificam o texto. Ao contrário, eles
costumam destruir a escrita. Barthes dizia uma frase que eu gosto
muito: não se deve decorar o texto, é preciso ilimitar a linguagem.
Sarah Kane, em suas últimas peças, inventou um teatro absolutamente abstrato, não-realista. São
peças que não têm apenas um
sentido, que não querem dizer
uma verdade, mas abrem caminhos para que encontremos em
nós e no exterior uma multiplicidade de sentidos sobre cada coisa
experimentada ou expressa.
Folha - Huppert move levemente,
às vezes, as mãos e os braços. E
também chora, provocando o movimento de lágrimas sobre o rosto.
Esses pequenos movimentos foram
previstos?
Régy - Não, eu sempre me abstenho de definir, porque penso profundamente que esse é o método
ruim de direção. Não é preciso definir, é preciso ser humilde. É preciso pensar que a passividade é
muito mais rica e criadora do que
a atividade, que é forçosamente
redutora. Se as lágrimas têm que
cair, que elas caiam. Só que elas
colocam um problema, pois uma
das primeiras frases do texto diz:
"Eu era capaz de chorar, agora estou para além das lágrimas". À
medida que as representações se
multiplicam, há menos lágrimas
no espetáculo. Penso que isso é
melhor. Mas, se as lágrimas vierem, é porque elas chegam de algo
instintivo e profundo. Em nome
da razão eu não tenho direito de ir
contra o animal que as produz.
Folha - A partir dos filmes que Isabelle Huppert fez, ela dá a impressão de ser uma atriz sobretudo cerebral. O sr. acha que a maneira racional e construtiva como ela trabalha ajuda a dar solidez ao espetáculo, que lida com camadas pouco palpáveis do inconsciente?
Régy - Não estou de acordo com
você. É certo que a lucidez e a inteligência são características muito
vivas nela, o que é sempre precioso. Mas, ao mesmo tempo, ela tem
um elemento instintual importante. O que ela faz de belo é se
deixar abandonar bastante ao
mesmo tempo em que está completamente controlada. Ela tem
um domínio grande de si própria
e uma perda de limites que remete
ao infinito.
Huppert tem uma energia e
uma força fora do comum. Essa
força ela passa ao público e faz
com que o texto seja realmente
transmitido, exceto para aqueles
que fecham as suas portas.
Folha - O sr. escreve que, no teatro, o que importa não é dizer ou
ouvir o texto, mas "trabalhar para
que ele faça ver". O que interessa
ver em "4.48 Psychose"? A loucura?
Régy - Ela não está louca de fato.
Diz várias vezes: eu não sou doente. E diz, por outro lado: a insanidade crônica dos sãos de espírito.
Ela está talvez em depressão. Mas
a depressão é causada por coisas
que estão no mundo. E sua lucidez sobre o mundo e si mesma é
perfeita. Ela fala desde um lugar
que eu chamaria de "interzona",
um espaço que está em comunicação com zonas conhecidas, mas
que até o momento é uma área totalmente ignorada por nós, capaz
de reunir os contrários.
Ela diz: "Eu não quero viver".
Três linhas depois, diz: "Eu não
quero morrer". Onde, então, situá-la, se ela não quer viver nem
morrer? Ela não é também nem
homem nem mulher: é hermafrodita. Ela diz que a doença faz com
que não haja mais distinção entre
o seu corpo e o resto do mundo.
Ela está num universo que escapa
completamente aos nossos hábitos ditos racionais.
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