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CONTARDO CALLIGARIS
Natal com John Rawls
Um exercício filosófico
para manter o espírito natalino.
Depois de um século de enfrentamentos, nas ruas, nos matagais
e dentro de cada cabeça, ficamos
numa espécie de empate entre o
sonho socialista e o sonho liberal.
Se nos dermos o tempo de pensar, chegaremos provavelmente a
estas constatações: não sabemos
renunciar aos anseios da liberdade individual, mas recusamos as
desigualdades excessivas de poderes e haveres. Essas desigualdades, de fato, constrangem a liberdade de todos, o que constitui
uma boa razão para combatê-las.
Mas como aboli-las sem comprometer a liberdade quase absoluta
que queremos preservar para todos?
Ainda existem liberais segundo
os quais qualquer um tem direito
a tudo que puder arrancar de seu
semelhante. Acham que a aspiração igualitária nos torna reféns
das exigências dos outros, ameaçando nossa liberdade. Também
ainda existem socialistas que
vêem na liberdade individual
uma traição dos ideais comunitários, que, para eles, deveriam ser
os únicos. Mas trata-se de minorias.
Grosso modo, concordamos.
Todos, ou quase, queremos o melhor dos dois sonhos, liberal e socialista, sem concessões: justiça e
liberdade.
A discórdia começa na hora de
decidir quais regras realizariam
uma sociedade ao mesmo tempo
livre e justa. John Rawls é o filósofo dessa hora. Morreu quase um
mês atrás, deixando um vazio
discreto, como acontece quando
vão embora os melhores, ou seja,
os que falam em voz baixa e nos
pedem o esforço de pensar.
Sua obra mais importante,
"Teoria da Justiça", foi publicada
em 1971. Talvez um dia, alguém,
procurando datar períodos no século 20, escolha essa data para
marcar o fim da modernidade e o
começo da pós-modernidade.
Pois o livro é um último esforço
da razão moderna para resolver o
conflito entre seus dois maiores
sonhos.
Rawls acredita que seja possível
estabelecer regras universais para
uma sociedade justa e livre. Como? Recorrendo a uma experiência racional que nos levaria a
conclusões unânimes em matéria
de justiça.
Imagine-se num limbo, antes de
nascer, ou seja, antes de saber
quais prêmios ou quais desgraças
lhe serão atribuídos pela loteria
da vida. Você não sabe se nascerá
miserável ou rico, na Somália ou
em Beverley Hills, rebento de uma
família uspiana ou analfabeta.
Cuidado: não basta imaginar-se
(fantasia de Woody Allen) como
espermatozóide na espera preocupada da ejaculação paterna,
nem como óvulo materno antes
da invasão. Na loteria da vida, é
preciso incluir o patrimônio genético. Você também não sabe se será homem ou mulher, branco ou
negro, alto ou baixo e, sobretudo,
não sabe se terá fragilidades genéticas para malformações e deficiências. Ou se terá ou não predisposições para algum talento.
Claro que essa "posição original" não existe. Mas somos todos
capazes de viajar, por um instante, até esse lugar fictício. De lá, poderíamos escrever, de um comum
acordo, as regras de uma sociedade justa.
À primeira vista, o apelo à "posição original" se parece com a
empatia, ou seja, com a capacidade de se colocar no lugar dos outros e de sentir suas dores. A diferença é que Rawls não propõe um
sentimento acidental e caritativo,
mas uma experiência universal
da razão, que orientaria nossas
decisões políticas e morais. Nisso,
a "Teoria da Justiça" poderia ser
o último grande texto moderno.
A pós-modernidade não acredita na universalidade da razão. E,
por exemplo, critica Rawls da
maneira seguinte: a experiência
da "posição original" é possível só
para nossa cultura. Nós acreditamos que nossa família seja a espécie humana. Podemos, portanto,
nos imaginar em qualquer lugar
na loteria da vida. Mas essa é
apenas a crença da tribo ocidental moderna.
Outras culturas acreditam que
os vizinhos, os pobres ou as outras
raças sejam bichos diferentes.
Elas escutariam a proposta de
Rawls com a indiferença que seria a nossa se ele nos convidasse a
imaginar que poderíamos nascer
bactéria, inseto ou truta. Conclusão: a pretensa universalidade da
razão justa seria uma crença histórica e culturalmente limitada.
Essa crítica procede, mas é sem
consequência. Pois nossa cultura
nos constitui: seus pressupostos
(por exemplo, a convicção de sermos todos membros da mesma
família humana) têm para nós
valor universal, são partes integrantes de nossa razão.
Mas há uma outra crítica, que a
prática da psicanálise leva a formular. Não estou certo de que, na
"posição original", por não conhecer os resultados da loteria da
vida, todos escolheríamos regras
justas. Suspeito que muitos prefeririam planejar uma sociedade
iníqua e correr o risco de tirar um
número ruim, à condição de preservar ao menos uma pequena
chance de ganhar e, portanto, de
gozar de privilégios inauditos.
Não sei o que Rawls responderia. Lamento que encontrá-lo não
seja mais possível. Não tanto para
solucionar a questão, mas porque
sua voz é uma das mais decentes
desse último meio século.
Feliz Natal (um pouco atrasado) a todos, sobretudo aos que
gostam de pensar e de falar em
voz baixa.
ccalligari@uol.com.br
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