São Paulo, sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Da arte de caçar rolinhas

Já não lembrava como começara. Sim, houve um tempo em que, na outra casa, o enorme quintal tentava. Havia rolinhas em todos os cantos, até mesmo na copa, muitas vezes estava almoçando e elas chegavam, chegavam, se ninguém as enxotasse elas vinham até quase a mesa, catar as migalhas.
Uma tarde, sem nada o que fazer, ele aceitou a idéia do primo. Foram para os fundos, arranjaram bacia, corda, instalaram-se no canto onde dois pés de coco-de-catarro marcavam duas silhuetas rudes contra a cal do sobrado do seu Ferraz. Ali, as rolinhas acampavam.
Bastava um pouco de milho ou de miolo de pão. Elas vinham saltitando nas magras perninhas. Eles puxavam a cordinha; às vezes, ficavam duas ou três presas. No fim da tarde, chegavam a dar aos vizinhos as rolinhas -um prato disputado pelas redondezas. Dona Auta, mulher do seu Almeida, sabia fazê-las com arroz.
Geraldinho, filho do dr. Passos, volta e meia convidava-o para brincar no galpão abandonado que havia lá para as bandas da fábrica de papelão. Era brincadeira aborrecida, o cheiro de papel molhado e das colas enjoava. Certa vez tomou coragem:
- Não, na fábrica não. Vamos brincar aqui mesmo.
Geraldinho argumentou que o quintal era cheio de capim, de nada poderiam brincar.
Fez gesto de enfado.
- Vamos caçar rolinhas.
Bom, isso era outra coisa. Geraldinho nunca tinha caçado rolinhas, nunca fizera nada de importante. E caçar rolinhas era importante:
- Depois a gente dá para a tua mãe fazer com arroz. Tem gente que gosta.
Geraldinho imaginou-se útil, chegar em casa com rolinhas na mão, a mãe faria qualquer coisa com eles, e o pai, ao jantar, talvez o elogiasse.
- E você? Você não leva rolinhas para casa?
- Não. Lá ninguém gosta.
Apanharam um pão na cozinha. Tiraram a casca e fizeram as rodelinhas de miolo, em silêncio. Depois, foram procurar o lugar. Ele sabia que não havia rolinha por ali, muito raramente apareciam cambaxirras, mas estava entediado, e dentro dele alguma coisa o amolecia, dando-lhe preguiça. Inconscientemente, sabia que a rolinha não era o importante:
- Aqui.
Um local como os outros. Havia um pouco de terra no intervalo do matagal. Com as rodelinhas de pão, fazia-se uma trilha. A trilha daria no canto mais úmido e fresco, onde a bacia foi colocada de boca para baixo, enviesada. Arranjaram um pedaço de pau para que escorasse a borda. A linha foi amarrada no pau. Na sombra que a bacia despejou no chão, derramaram o resto do miolo de pão.
- Agora. Vamos nos esconder.
Geraldinho, dono do rolo, ia desembrulhando a linha com cuidado. Um puxão mais forte e poderia desfazer a armadilha.
- Vamos ficar aonde?
- Um pouco mais longe...
Demoraram ainda um pouco, até encontrarem a moita que os esconderia. As rolinhas não os veriam. E eles veriam as rolinhas. Atrás da moita, havia um trecho de grama intercalado com capim rasteiro. Ali podiam deitar-se e esperar.
- Pronto, deita aqui.
Geraldinho deitou, sem receios. O rolo de linha entre as mãos. O piloto que levou a bomba atômica para Hiroshima não estava mais concentrado do que ele em cumprir sua missão.
Deitou-se ao lado de Geraldinho.
- E agora?
- Agora? Vamos esperar pelas rolinhas. Não é fácil não. Elas custam a aparecer.
- E se elas não vierem?
- Com você falando é que elas não aparecem mesmo. Fique quietinho, aconteça o que acontecer, não se mexa.
Geraldinho não mais se mexeu, decidiu colaborar. Qualquer coisa que acontecesse e ele ficaria quieto, esperando o grande momento. Deitado de bruços, ficou olhando o seu rolo ao alcance da mão. Bastaria uma ordem do amigo e ele puxaria a linha. No fundo, achava que seria mais fácil o Dalai Lama passar por ali do que uma rolinha. Mas obedecia, submisso, ao garoto mais velho que sabia coisas que ele não sabia.
Ficaram por ali mais um tempo. Geraldinho, com a cara enfiada no chão, não estava entendendo mais nada, ou melhor começava a entender alguma coisa inédita em sua pouca experiência de quintal. Até que o amigo soprou baixinho em cima de sua nuca.
-Agora! Cuidado, vai entrar uma... Puxa!
Geraldinho obedeceu, aliviado. Cumprira sua parte, fizera a vontade do amigo. Correram à arapuca. Ele fingiu cuidado ao levantar a bacia.
- É preciso saber fazer isso, a rolinha pode fugir.
Não havia rolinha nenhuma. A mão do amigo tateou sob a bacia, quando veio para fora trouxe bolinhas de pão.
- Fugiu?
- Não, seu bobo, você não soube puxar. Demorou muito, quando a bacia caiu a rolinha já tinha fugido.
E depois, para garantir uma outra vez:
-Na próxima vez, quem vai puxar sou eu.


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