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CARLOS HEITOR CONY
Da arte de caçar rolinhas
Já não lembrava como começara. Sim, houve um tempo
em que, na outra casa, o enorme
quintal tentava. Havia rolinhas
em todos os cantos, até mesmo na
copa, muitas vezes estava almoçando e elas chegavam, chegavam, se ninguém as enxotasse
elas vinham até quase a mesa, catar as migalhas.
Uma tarde, sem nada o que fazer, ele aceitou a idéia do primo.
Foram para os fundos, arranjaram bacia, corda, instalaram-se
no canto onde dois pés de coco-de-catarro marcavam duas silhuetas rudes contra a cal do sobrado do seu Ferraz. Ali, as rolinhas acampavam.
Bastava um pouco de milho ou
de miolo de pão. Elas vinham saltitando nas magras perninhas.
Eles puxavam a cordinha; às vezes, ficavam duas ou três presas.
No fim da tarde, chegavam a dar
aos vizinhos as rolinhas -um
prato disputado pelas redondezas. Dona Auta, mulher do seu
Almeida, sabia fazê-las com arroz.
Geraldinho, filho do dr. Passos,
volta e meia convidava-o para
brincar no galpão abandonado
que havia lá para as bandas da
fábrica de papelão. Era brincadeira aborrecida, o cheiro de papel molhado e das colas enjoava.
Certa vez tomou coragem:
- Não, na fábrica não. Vamos
brincar aqui mesmo.
Geraldinho argumentou que o
quintal era cheio de capim, de nada poderiam brincar.
Fez gesto de enfado.
- Vamos caçar rolinhas.
Bom, isso era outra coisa. Geraldinho nunca tinha caçado rolinhas, nunca fizera nada de importante. E caçar rolinhas era importante:
- Depois a gente dá para a tua
mãe fazer com arroz. Tem gente
que gosta.
Geraldinho imaginou-se útil,
chegar em casa com rolinhas na
mão, a mãe faria qualquer coisa
com eles, e o pai, ao jantar, talvez
o elogiasse.
- E você? Você não leva rolinhas para casa?
- Não. Lá ninguém gosta.
Apanharam um pão na cozinha. Tiraram a casca e fizeram as
rodelinhas de miolo, em silêncio.
Depois, foram procurar o lugar.
Ele sabia que não havia rolinha
por ali, muito raramente apareciam cambaxirras, mas estava
entediado, e dentro dele alguma
coisa o amolecia, dando-lhe preguiça. Inconscientemente, sabia
que a rolinha não era o importante:
- Aqui.
Um local como os outros. Havia
um pouco de terra no intervalo do
matagal. Com as rodelinhas de
pão, fazia-se uma trilha. A trilha
daria no canto mais úmido e fresco, onde a bacia foi colocada de
boca para baixo, enviesada. Arranjaram um pedaço de pau para
que escorasse a borda. A linha foi
amarrada no pau. Na sombra
que a bacia despejou no chão,
derramaram o resto do miolo de
pão.
- Agora. Vamos nos esconder.
Geraldinho, dono do rolo, ia desembrulhando a linha com cuidado. Um puxão mais forte e poderia desfazer a armadilha.
- Vamos ficar aonde?
- Um pouco mais longe...
Demoraram ainda um pouco,
até encontrarem a moita que os
esconderia. As rolinhas não os veriam. E eles veriam as rolinhas.
Atrás da moita, havia um trecho
de grama intercalado com capim
rasteiro. Ali podiam deitar-se e
esperar.
- Pronto, deita aqui.
Geraldinho deitou, sem receios.
O rolo de linha entre as mãos. O
piloto que levou a bomba atômica para Hiroshima não estava
mais concentrado do que ele em
cumprir sua missão.
Deitou-se ao lado de Geraldinho.
- E agora?
- Agora? Vamos esperar pelas
rolinhas. Não é fácil não. Elas custam a aparecer.
- E se elas não vierem?
- Com você falando é que elas
não aparecem mesmo. Fique
quietinho, aconteça o que acontecer, não se mexa.
Geraldinho não mais se mexeu,
decidiu colaborar. Qualquer coisa
que acontecesse e ele ficaria quieto, esperando o grande momento.
Deitado de bruços, ficou olhando
o seu rolo ao alcance da mão.
Bastaria uma ordem do amigo e
ele puxaria a linha. No fundo,
achava que seria mais fácil o Dalai Lama passar por ali do que
uma rolinha. Mas obedecia, submisso, ao garoto mais velho que
sabia coisas que ele não sabia.
Ficaram por ali mais um tempo.
Geraldinho, com a cara enfiada
no chão, não estava entendendo
mais nada, ou melhor começava
a entender alguma coisa inédita
em sua pouca experiência de
quintal. Até que o amigo soprou
baixinho em cima de sua nuca.
-Agora! Cuidado, vai entrar
uma... Puxa!
Geraldinho obedeceu, aliviado.
Cumprira sua parte, fizera a vontade do amigo. Correram à arapuca. Ele fingiu cuidado ao levantar a bacia.
- É preciso saber fazer isso, a
rolinha pode fugir.
Não havia rolinha nenhuma. A
mão do amigo tateou sob a bacia,
quando veio para fora trouxe bolinhas de pão.
- Fugiu?
- Não, seu bobo, você não soube puxar. Demorou muito, quando a bacia caiu a rolinha já tinha
fugido.
E depois, para garantir uma outra vez:
-Na próxima vez, quem vai
puxar sou eu.
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