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Crítica
Melancolia engrandece jogo literário de autor
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
O bispo irlandês George
Berkeley já dizia, 300
anos atrás, que "ser é
ser percebido". Pode parecer
estranho que um escritor tão
desejoso de "ser percebido" (e
isso, já longe das implicações filosóficas, tem outro nome...)
como o espanhol Enrique Vila-Matas produza um livro exatamente sobre a vontade de não
ser percebido, de desaparecer,
"Doutor Pasavento".
Reaparecem aqui seus heróis
literários, Walser (sempre muito presente), Kafka, Benjamin,
Blanchot, Beckett e tantos
mais; reaparecem também as
mesclas entre romance e ensaio, biografia e ficção.
Na perspectiva irônica usual
que caracteriza seus textos
-obras próximas a esta, como
"O Mal de Montano", "Bartleby
e Companhia" ou "Suicídios
Exemplares" (já publicados no
Brasil pela Cosac Naify)-, Vila-Matas narra a viagem de um escritor a Sevilha, para participar
de um debate literário sobre
realidade e ficção.
Uma série de coincidências
faz com que o tema que desejava discutir no encontro deslize
para uma constatação existencial (a percepção tão fundamental no século 20 de estar
"cansado do eu") e um desafio:
"Mas como faria para desaparecer? Acaso alguma vez alguém havia conseguido mesmo
isso? Ao contrário do que tinha
pensado no castelo de Montaigne, agora me parecia muito
difícil desaparecer por completo. (...) Não era muito claro que
pudesse me libertar absoluta e
totalmente de mim mesmo".
Jogo literário
Essa é a busca que o narrador, sempre se transformando,
empreende ao longo da obra,
por meio de diferentes estratégias: ele, por exemplo, se transfigura no psiquiatra doutor Pasavento ("Eu me chamo Pasavento, mas também responderei por telefone a quem perguntar pelo doutor Pynchon", diz à
recepcionista do hotel em Nápoles, uma das muitas cidades
por onde passa depois que decide faltar ao debate e desaparecer) para entabular enigmáticas conversas com Morante,
um cultíssimo ex-professor
com problemas de memória,
para quem perdera uma namorada muitos anos antes e que se
encontra internado em um sanatório, assim como Walser.
Se o jogo literário cumpre
aqui, como quase sempre em
Vila-Matas, papel preponderante, a novidade é que ele vem
acompanhado de um tom melancólico que o engrandece e
ilumina: "A mim ninguém mais
procura. Talvez achem que eu
esteja de férias de fim de ano.
Mas não sei, suspeito que ninguém se pergunta onde estou
porque ninguém pensa em
mim e, menos ainda, que eu
possa ter desaparecido. A verdade é que a vida continua
igual".
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
(EACH) da USP.
DOUTOR PASAVENTO
Autor: Enrique Vila-Matas
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 55 (412 págs.)
Avaliação: ótimo
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