São Paulo, sábado, 27 de fevereiro de 2010

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Crítica

Melancolia engrandece jogo literário de autor

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O bispo irlandês George Berkeley já dizia, 300 anos atrás, que "ser é ser percebido". Pode parecer estranho que um escritor tão desejoso de "ser percebido" (e isso, já longe das implicações filosóficas, tem outro nome...) como o espanhol Enrique Vila-Matas produza um livro exatamente sobre a vontade de não ser percebido, de desaparecer, "Doutor Pasavento".
Reaparecem aqui seus heróis literários, Walser (sempre muito presente), Kafka, Benjamin, Blanchot, Beckett e tantos mais; reaparecem também as mesclas entre romance e ensaio, biografia e ficção.
Na perspectiva irônica usual que caracteriza seus textos -obras próximas a esta, como "O Mal de Montano", "Bartleby e Companhia" ou "Suicídios Exemplares" (já publicados no Brasil pela Cosac Naify)-, Vila-Matas narra a viagem de um escritor a Sevilha, para participar de um debate literário sobre realidade e ficção.
Uma série de coincidências faz com que o tema que desejava discutir no encontro deslize para uma constatação existencial (a percepção tão fundamental no século 20 de estar "cansado do eu") e um desafio: "Mas como faria para desaparecer? Acaso alguma vez alguém havia conseguido mesmo isso? Ao contrário do que tinha pensado no castelo de Montaigne, agora me parecia muito difícil desaparecer por completo. (...) Não era muito claro que pudesse me libertar absoluta e totalmente de mim mesmo".

Jogo literário
Essa é a busca que o narrador, sempre se transformando, empreende ao longo da obra, por meio de diferentes estratégias: ele, por exemplo, se transfigura no psiquiatra doutor Pasavento ("Eu me chamo Pasavento, mas também responderei por telefone a quem perguntar pelo doutor Pynchon", diz à recepcionista do hotel em Nápoles, uma das muitas cidades por onde passa depois que decide faltar ao debate e desaparecer) para entabular enigmáticas conversas com Morante, um cultíssimo ex-professor com problemas de memória, para quem perdera uma namorada muitos anos antes e que se encontra internado em um sanatório, assim como Walser.
Se o jogo literário cumpre aqui, como quase sempre em Vila-Matas, papel preponderante, a novidade é que ele vem acompanhado de um tom melancólico que o engrandece e ilumina: "A mim ninguém mais procura. Talvez achem que eu esteja de férias de fim de ano.
Mas não sei, suspeito que ninguém se pergunta onde estou porque ninguém pensa em mim e, menos ainda, que eu possa ter desaparecido. A verdade é que a vida continua igual".

ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.



DOUTOR PASAVENTO

Autor: Enrique Vila-Matas
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 55 (412 págs.)
Avaliação: ótimo




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