São Paulo, sexta, 27 de fevereiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma valsa no início da noite

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

O primeiro rádio foi um sucesso: um Pilot de seis válvulas, numa caixa de madeira em forma de janela gótica. O tecido que protegia o alto-falante era de um grená profundo, aveludado, coava luxuriosamente a voz de Chico Alves e Mário Reis, os agudos de Vicente Celestino.
O pai saíra para trabalhar e deixara o rádio na estação que minha mãe escolhera. Era só ligar na tomada e ele funcionaria no volume desejado. No final da tarde, esquecidos do fio desligado, apertamos o botão encimado pelas cabalísticas palavras "on" e "off". Esperamos a luzinha vermelha que devia se acender.
Não acendeu. Apertamos o botão de novo, na terceira tentativa cheguei a ouvir um estalo dentro da caixa mágica. "Agora vai!" Não foi. Convocamos o vizinho, um sujeito que se chamava Ângelo, passava o dia todo de pijama, sentado numa cadeira de vime, na calçada em frente. Ele foi buscar os óculos, veio mexer no botão fatídico, deu palmadas na parte de trás do rádio, declarou que o aparelho enguiçara -e voltou para a sua cadeira de vime na calçada.
Foi com ódio que ouvi outros rádios serem ligados, a voz de Gastão Formenti varar o ar fino da Boca do Mato, no sucesso do momento: "Folhas ao vento... assim o destino nos separou..."
Excitado por ter um rádio à sua espera, o pai chegou mais cedo naquela noite. Acabávamos de jantar e ouvimos o barulho que ele fazia ao abrir o portão do jardim. Corri para ele e denunciei o mau comportamento do Pilot.
-O rádio não funcionou! Seu Ângelo disse que está enguiçado!
O pai não gostava de Seu Ângelo, cismava com o pijama dele, a cadeira de vime na calçada, a disponibilidade de tempo que o vizinho exibia acintosamente. Chamava-o de "parasita social", brigavam por causa de selos que ambos colecionavam e nunca se entendiam sobre política.
- Não quero que chamem aquele integralista para nada! É um fascista!
Diante do rádio, ele examinou se havia algum vestígio da intromissão do vizinho. Na dúvida, passou o lenço pela madeira envernizada do aparelho, a fim de exorcizá-lo de qualquer influência nefasta. Depois, perguntou se nós havíamos ligado direito. Eu disse que sim. Minha mãe confirmou e apontou o botão fatal.
O pai estava tenso até então. Quando percebeu que não o ligáramos na tomada, relaxou e riu. Com a perícia do mágico que quebra um ovo e do ovo surge uma pomba, ele afastou o aparelho da parede, pegou o fio que pendia inútil e esquecido, ligou-o -e, maravilhosamente, o som de uma valsa vienense encheu a nossa sala, a nossa noite, a nossa alegria.
Foi esse o meu primeiro trombo com os aparelhos que se ligam às tomadas elétricas, com aquilo que, com algum exagero, poderia chamar de "tecnologia de ponta". Daí para cá, seguiu-se o longo desfilar de escaramuças e prejuízos, incluindo geladeiras, barbeadores, ar-refrigerado, gravadores, aparelhos de som, facas elétricas -agravados pelo advento da era eletrônica, que entupiu meu cotidiano com microondas, vídeos a serem programados, fax, o diabo. Bem ou mal, ia levando, até que vi, entronizado como ponta de lança inimiga na minha cidadela, o primeiro computador.
Chegara o momento da verdade. A geração de jornalistas que me antecedera fora marginalizada pela máquina de escrever. O pai pertencera a essa turma, nunca se adaptara, chegava a catar milho, mas -segundo suas próprias palavras- ficava oco: "Sei onde estão as letras, mas não sei o que fazer com elas".
Agora era a minha vez. Ou decifrava a Esfinge eletrônica ou seria devorado. Em princípio, julguei-me desgraçado. Afinal, bem podia pendurar minhas chuteiras sem necessidade de encarar um desafio para o qual estava despreparado. A lembrança do Pilot enguiçado, Seu Ângelo de pijama dando palmadinhas no nosso rádio eram imagens que me perseguiam cada vez que ameaçavam instalar um computador em minha sala.
Os homens entraram com a cangalha ainda encaixotada, recebi-os como Anjos Exterminadores, vinham anunciar que minha hora chegara. Lembrava o pai: não adiantava saber onde estavam as letras, o importante era saber o que fazer com elas.
Logo descobri que o computador podia funcionar como uma simples máquina de escrever bem dotada. Retomei o gosto pelo ato de escrever. Depois de um jejum de 23 anos, em menos de um mês desovei um quase-romance e logo em seguida um outro e depois um terceiro. Minha tecnofobia continua em alta, há um pacto mortal contra aparelhos sofisticados, mas também, que diabo, não sou idiota ao ponto de recusar a evidência.
Contudo, cada vez que ligo o computador, nunca esqueço de olhar o fio da tomada. Espero que a luzinha verde do transformador se acenda -nem tenho mais Seu Ângelo à minha disposição, com seu pijama e sua cadeira de vime na calçada, para vir dar palmadinhas no meu já superado 486. Cumprido o fundamental, tenho a certeza de que novamente uma valsa vienense inundará meu espaço e alegrará a minha noite.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.