São Paulo, sexta, 27 de fevereiro de 1998

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OPINIÃO
Viradouro é nossa Eurídice

BETTY MILAN
especial para a Folha

Com ele, com Joãosinho Trinta, o amor está sempre no ar.
A voz rouca de quem não consegue mais dizer uma só palavra, ele lembra que a Oitava Maravilha está passando na Sapucaí e depois anuncia ardorosamente que a Viradouro, a sua escola, vai entrar.
Levanta o braço direito e acena para o público, que, vendo o riso, enxerga também inevitavelmente o braço do derrame, paralisado.
Tão da vida o João quanto ele é mortal -como diz o seu comovente enredo, tudo que nasce more, salvo Orfeu...
O aceno acaba e o locutor pergunta se o médico o autorizou a ir para a avenida.
Oficialmente, responde o carnavalesco, eu não posso estar aqui. Com uma só palavra, ele exalta o oficioso e se posiciona do lado do que não é oficial, de quem subverte a ordem para criar.
O desfile começa e a imagem que primeiro vemos é a de Apolo, solar, o Deus que tanto representava para os gregos o ideal da juventude, da beleza e do progresso quanto o gênio artístico do país.
E com Apolo, vestido de amarelo no abre-alas, com esta Grécia tropical, o carnavalesco põe em cena o Brasil. Quem então aparece é um Orfeu Negro, é Djavan. Porque foi Orfeu que recebeu de Apolo uma lira de que tirava sons tão melífluos que os rios paravam, as pedras o seguiam e as folhas deixavam de farfalhar.
E, como Orfeu não existe sem Eurídice e o amor está sempre no ar, nós logo vemos entrar uma porta bandeira grávida, cujo ventre o figurinista exibiu -reinventando para ela a tradição e concebendo um vestido que a desnudava.
Diante dessa princesa grávida, não há mais como resistir à paixão e a Viradouro é a nossa Eurídice.
Para não perdê-la, tudo faríamos, como Orfeu, que desceu aos Infernos em busca da amada.
Importa, quando o amor arrebata, ser obrigado a percorrer o mundo das sombras?
Encontrar o próprio Coríntio -o deus da Terra dos Mortos-, cotejar os espectros do Jardim do Hades, os demônios subterrâneos, que, no Mundo das Sombras, Joãosinho Trinta, à maneira de um Monteiro Lobato, mostrou.
Tudo para não perder Eurídice, ainda que isso seja impossível, porque o amor é tão inseparável da morte quanto a vida.
A Viradouro, como a ninfa grega, se foi, mas, como a ninfa, é inesquecível -pelos anjos, pelos diabos e pelos corpos que só para a escola e o desfile se moldaram.
Tão inesquecível quanto os Orfeus brasileiros que ela glorificou, Noel Rosa, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres...
Mais uma vez, João Jorge Trinta, o incansável, mostrou que o melhor do Brasil paradoxalmente sai do mais cruel dos Brasis, o país iluminado da favela que o carnavalesco, com a ousadia que lhe é própria, comparou ao Olimpo.
Ter presenciado esse desfile é um privilégio do céu.
Obrigada, João.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "Paris Não Acaba Nunca" e "A Paixão de Lia".


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