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OPINIÃO
Viradouro é nossa Eurídice
BETTY MILAN
especial para a Folha
Com ele, com Joãosinho Trinta,
o amor está sempre no ar.
A voz rouca de quem não consegue mais dizer uma só palavra, ele
lembra que a Oitava Maravilha está passando na Sapucaí e depois
anuncia ardorosamente que a Viradouro, a sua escola, vai entrar.
Levanta o braço direito e acena
para o público, que, vendo o riso,
enxerga também inevitavelmente
o braço do derrame, paralisado.
Tão da vida o João quanto ele é
mortal -como diz o seu comovente enredo, tudo que nasce more, salvo Orfeu...
O aceno acaba e o locutor pergunta se o médico o autorizou a ir
para a avenida.
Oficialmente, responde o carnavalesco, eu não posso estar aqui.
Com uma só palavra, ele exalta o
oficioso e se posiciona do lado do
que não é oficial, de quem subverte a ordem para criar.
O desfile começa e a imagem que
primeiro vemos é a de Apolo, solar, o Deus que tanto representava
para os gregos o ideal da juventude, da beleza e do progresso quanto o gênio artístico do país.
E com Apolo, vestido de amarelo
no abre-alas, com esta Grécia tropical, o carnavalesco põe em cena
o Brasil. Quem então aparece é um
Orfeu Negro, é Djavan. Porque foi
Orfeu que recebeu de Apolo uma
lira de que tirava sons tão melífluos que os rios paravam, as pedras o seguiam e as folhas deixavam de farfalhar.
E, como Orfeu não existe sem
Eurídice e o amor está sempre no
ar, nós logo vemos entrar uma
porta bandeira grávida, cujo ventre o figurinista exibiu -reinventando para ela a tradição e concebendo um vestido que a desnudava.
Diante dessa princesa grávida,
não há mais como resistir à paixão
e a Viradouro é a nossa Eurídice.
Para não perdê-la, tudo faríamos, como Orfeu, que desceu aos
Infernos em busca da amada.
Importa, quando o amor arrebata, ser obrigado a percorrer o
mundo das sombras?
Encontrar o próprio Coríntio
-o deus da Terra dos Mortos-,
cotejar os espectros do Jardim do
Hades, os demônios subterrâneos,
que, no Mundo das Sombras,
Joãosinho Trinta, à maneira de
um Monteiro Lobato, mostrou.
Tudo para não perder Eurídice,
ainda que isso seja impossível,
porque o amor é tão inseparável
da morte quanto a vida.
A Viradouro, como a ninfa grega, se foi, mas, como a ninfa, é
inesquecível -pelos anjos, pelos
diabos e pelos corpos que só para a
escola e o desfile se moldaram.
Tão inesquecível quanto os Orfeus brasileiros que ela glorificou,
Noel Rosa, Pixinguinha, Heitor
dos Prazeres...
Mais uma vez, João Jorge Trinta,
o incansável, mostrou que o melhor do Brasil paradoxalmente sai
do mais cruel dos Brasis, o país
iluminado da favela que o carnavalesco, com a ousadia que lhe é
própria, comparou ao Olimpo.
Ter presenciado esse desfile é
um privilégio do céu.
Obrigada, João.
Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de
"Paris Não Acaba Nunca" e "A Paixão de Lia".
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