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O teatro, infelizmente, não está em crise
GERALD THOMAS
em Graz, Áustria
Já é quase noite e estou sentado, sozinho, na enorme platéia vazia do barroco Teatro
Municipal de Graz. Esse palco
é um verdadeiro sobrevivente
da triste história européia, pois
foi usado para os mais diversos
fins políticos e culturais da recente saga desse continente.
Desde Hitler, que se plantava
bem no centro de sua enorme
boca de cena e "encenava"
seus diabólicos comícios, ou
Wittgenstein, que lia aqui seus
manifestos filosóficos, até Arnold Schwarzenegger (nativo
de Graz) que insistiu em lançar aqui seu "True Lies" em 94,
para saldar uma antiga dívida
com aqueles que zombavam
dele quando dizia que, um dia,
tomaria Hollywood de assalto.
O apelido carinhoso do palco
da Ópera de Graz é "O Palco
da Crise". Nada mais apropriado, pois a arte nasce da
crise, do conflito brabo e do
conflito mesquinho; ela nasce
do bombardeio entre artistas,
e, às vezes, a arte nasce dos
piores sentimentos.
O leigo raramente entende
isso. Para o não-artista, a crise
é uma coisa terrível, um fim de
mundo, a morte. Sentado aqui
nessa platéia escura, ainda ouço as perguntas obsessivamente repetitivas: "Gerald Thomas, o teatro está em crise?".
Sempre com uma certa malícia
e a vontade de que o artista se
declare um derrotado, a frequência dessas perguntas está
me irritando cada vez mais.
"Gerald Thomas, o teatro está em crise?"
Minha triste resposta é sempre "não, queridos, infelizmente o teatro não está em crise, e isso é terrível pro teatro".
Se estivesse em crise, novas formas e conteúdos incríveis estariam aí, provocando, demolindo a Babel do insignificâncias
dessa última década, tanto na
Europa quanto nos EUA e no
Brasil. Daqui de Graz, essa
perspectiva se torna ainda
mais nítida, pois a Áustria já
foi o "domicílio oficial" das
melhores e mais produtivas
crises.
O cinismo e deboche do austríaco acabam resultando na
melhor provocação de que o
artista precisa pra checar seus
eixos, pra entrar e sair de uma
crise. Desde Mozart até Mahler
e Schoenberg, e desde Schiele e
Kokoshka até Freud, Wittgentein e Peter Handke, a desconfiança do austríaco sempre encarou seus artistas e filósofos
com uma certa ironia. Ou seja,
a Áustria é uma espécie de
"palco da crise", e isso não poderia ser mais saudável.
E as vozes imbecis continuam: "Gerald Thomas, o teatro está em crise?".
Estou em Graz pra fazer
aquilo que faço todo ano: uma
"bauprobe". A "bauprobe" é
uma espécie de ensaio técnico,
um ritual que experimenta todos os elementos técnicos que
integram aquilo que, daqui a
oito meses, estreará para o público e críticos em forma de um
"espetáculo".
Nessa "bauprobe", diretor,
cenógrafo, maestro e a vasta
equipe técnica entram em crise, ou quase colapso, pois são
muitos os egos em guerra, cada
"estrela" mais intransigente
que a outra. A "bauprobe" é,
na verdade, a última chance
que nós, narcisistas, temos para encontrar concessões em
nossos "firmes conceitos" (todos, obviamente, "geniais").
No dia seguinte à "bauprobe", as oficinas começarão a
construir o cenário e produzir
os figurinos e nada mais poderá ser alterado. Esse é um dos
documentos mais tensos na
preparação de uma ópera e,
também, um dos mais solidários. Estamos todos inseguros e
nosso conhecimento da ópera
em questão ainda é insuficiente.
Qual é a ópera em questão? É
"Moisés e Arão", a obra revolucionária, dodecafônica e insuportável que Arnold Schoenberg não conseguiu terminar,
pois estava em plena crise.
Sim, existem crises que não nos
levam pra frente, mas são poucas.
Meu cenógrafo entrou em
crise nessa "bauprobe" e resolveu repensar todo seu conceito.
Ele é Guenther Domenig, 63
anos e um dos arquitetos mais
premiados da Europa. Com
obras magníficas espalhadas
pelo mundo inteiro, Domenig
cria suas estruturas edificadas
a partir da crise.
Um mero problema técnico,
pra ele, se transforma numa
questão filosófica fundamental e tudo passa a ser reanalisado, desde os materiais usados até a forma que eles deverão representar. Domenig, em
crise, se despede de todos e vai
andar. As equipes entendem a
verdadeira função de uma crise e uma nova "bauprobe" é
marcada para o dia seguinte.
A poucas décadas e alguns
quilômetros daqui, o filósofo
Wittgenstein desmereceu, ridicularizou e depois reduziu à
mera impotência toda a prepotente história da filosofia.
Aqui nesse palco, seus ensaios de "Investigações Filosóficas" eram lidos ao som de
vaias. Disse ele: "Os resultados
da filosofia dão na eventual
revelação de um ou outro
"nonsense' e em verdadeiros
calombos no nosso processo de
entendimento, obtidos pelo
constante bater de nossas cabeças nos limites da linguagem". Sem saber, a crise criada
por Wittgenstein teve impactos
decisivos na arte teatral.
As afirmações de Wittgenstein tiveram mais impacto sobre Beckett do que toda a obra
de James Joyce, e seu entendimento de que os seres humanos não se expressam por meio
de palavras, mas "operam" sob
seus comandos, gerou aquilo
que hoje chamamos de linguagem beckettiana, ou seja, a
dramaturgia que esculpe a crise do ser perante a impotência
do vernáculo.
Em chinês, a palavra "crise"
é representada pela junção dos
caracteres "perigo" e "oportunidade". Em chinês ou em finlandês, crise é a manifestação
mais honesta do processo de
dúvida e de humildade do artista. Curiosamente, as grandes crises da arte nunca foram
derrotistas.
"E aí, Gerald, o teatro está
em crise?" Antes estivesse. Mas
enquanto a total liberdade dos
tempos não permite que ela venha, recomendo aos perguntadores profissionais que leiam
os bandeirantes da crise, como
Buechner, Rimbaud, Kafka,
Artaud, Brecht ou Beckett.
Quem sabe então essas perguntas (que vêm sempre num tom
fúnebre e falsamente solidário) não virão em tom de euforia: "E aí, Gerald, que bela crise, hein?".
E-mail: geraldthomas@uol.com.br
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