São Paulo, sexta, 27 de fevereiro de 1998

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O teatro, infelizmente, não está em crise

GERALD THOMAS
em Graz, Áustria

Já é quase noite e estou sentado, sozinho, na enorme platéia vazia do barroco Teatro Municipal de Graz. Esse palco é um verdadeiro sobrevivente da triste história européia, pois foi usado para os mais diversos fins políticos e culturais da recente saga desse continente.
Desde Hitler, que se plantava bem no centro de sua enorme boca de cena e "encenava" seus diabólicos comícios, ou Wittgenstein, que lia aqui seus manifestos filosóficos, até Arnold Schwarzenegger (nativo de Graz) que insistiu em lançar aqui seu "True Lies" em 94, para saldar uma antiga dívida com aqueles que zombavam dele quando dizia que, um dia, tomaria Hollywood de assalto.
O apelido carinhoso do palco da Ópera de Graz é "O Palco da Crise". Nada mais apropriado, pois a arte nasce da crise, do conflito brabo e do conflito mesquinho; ela nasce do bombardeio entre artistas, e, às vezes, a arte nasce dos piores sentimentos.
O leigo raramente entende isso. Para o não-artista, a crise é uma coisa terrível, um fim de mundo, a morte. Sentado aqui nessa platéia escura, ainda ouço as perguntas obsessivamente repetitivas: "Gerald Thomas, o teatro está em crise?". Sempre com uma certa malícia e a vontade de que o artista se declare um derrotado, a frequência dessas perguntas está me irritando cada vez mais.
"Gerald Thomas, o teatro está em crise?"
Minha triste resposta é sempre "não, queridos, infelizmente o teatro não está em crise, e isso é terrível pro teatro". Se estivesse em crise, novas formas e conteúdos incríveis estariam aí, provocando, demolindo a Babel do insignificâncias dessa última década, tanto na Europa quanto nos EUA e no Brasil. Daqui de Graz, essa perspectiva se torna ainda mais nítida, pois a Áustria já foi o "domicílio oficial" das melhores e mais produtivas crises.
O cinismo e deboche do austríaco acabam resultando na melhor provocação de que o artista precisa pra checar seus eixos, pra entrar e sair de uma crise. Desde Mozart até Mahler e Schoenberg, e desde Schiele e Kokoshka até Freud, Wittgentein e Peter Handke, a desconfiança do austríaco sempre encarou seus artistas e filósofos com uma certa ironia. Ou seja, a Áustria é uma espécie de "palco da crise", e isso não poderia ser mais saudável.
E as vozes imbecis continuam: "Gerald Thomas, o teatro está em crise?".
Estou em Graz pra fazer aquilo que faço todo ano: uma "bauprobe". A "bauprobe" é uma espécie de ensaio técnico, um ritual que experimenta todos os elementos técnicos que integram aquilo que, daqui a oito meses, estreará para o público e críticos em forma de um "espetáculo".
Nessa "bauprobe", diretor, cenógrafo, maestro e a vasta equipe técnica entram em crise, ou quase colapso, pois são muitos os egos em guerra, cada "estrela" mais intransigente que a outra. A "bauprobe" é, na verdade, a última chance que nós, narcisistas, temos para encontrar concessões em nossos "firmes conceitos" (todos, obviamente, "geniais").
No dia seguinte à "bauprobe", as oficinas começarão a construir o cenário e produzir os figurinos e nada mais poderá ser alterado. Esse é um dos documentos mais tensos na preparação de uma ópera e, também, um dos mais solidários. Estamos todos inseguros e nosso conhecimento da ópera em questão ainda é insuficiente.
Qual é a ópera em questão? É "Moisés e Arão", a obra revolucionária, dodecafônica e insuportável que Arnold Schoenberg não conseguiu terminar, pois estava em plena crise. Sim, existem crises que não nos levam pra frente, mas são poucas.
Meu cenógrafo entrou em crise nessa "bauprobe" e resolveu repensar todo seu conceito. Ele é Guenther Domenig, 63 anos e um dos arquitetos mais premiados da Europa. Com obras magníficas espalhadas pelo mundo inteiro, Domenig cria suas estruturas edificadas a partir da crise.
Um mero problema técnico, pra ele, se transforma numa questão filosófica fundamental e tudo passa a ser reanalisado, desde os materiais usados até a forma que eles deverão representar. Domenig, em crise, se despede de todos e vai andar. As equipes entendem a verdadeira função de uma crise e uma nova "bauprobe" é marcada para o dia seguinte.
A poucas décadas e alguns quilômetros daqui, o filósofo Wittgenstein desmereceu, ridicularizou e depois reduziu à mera impotência toda a prepotente história da filosofia.
Aqui nesse palco, seus ensaios de "Investigações Filosóficas" eram lidos ao som de vaias. Disse ele: "Os resultados da filosofia dão na eventual revelação de um ou outro "nonsense' e em verdadeiros calombos no nosso processo de entendimento, obtidos pelo constante bater de nossas cabeças nos limites da linguagem". Sem saber, a crise criada por Wittgenstein teve impactos decisivos na arte teatral.
As afirmações de Wittgenstein tiveram mais impacto sobre Beckett do que toda a obra de James Joyce, e seu entendimento de que os seres humanos não se expressam por meio de palavras, mas "operam" sob seus comandos, gerou aquilo que hoje chamamos de linguagem beckettiana, ou seja, a dramaturgia que esculpe a crise do ser perante a impotência do vernáculo.
Em chinês, a palavra "crise" é representada pela junção dos caracteres "perigo" e "oportunidade". Em chinês ou em finlandês, crise é a manifestação mais honesta do processo de dúvida e de humildade do artista. Curiosamente, as grandes crises da arte nunca foram derrotistas.
"E aí, Gerald, o teatro está em crise?" Antes estivesse. Mas enquanto a total liberdade dos tempos não permite que ela venha, recomendo aos perguntadores profissionais que leiam os bandeirantes da crise, como Buechner, Rimbaud, Kafka, Artaud, Brecht ou Beckett. Quem sabe então essas perguntas (que vêm sempre num tom fúnebre e falsamente solidário) não virão em tom de euforia: "E aí, Gerald, que bela crise, hein?".

E-mail: geraldthomas@uol.com.br



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