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LIVROS
Memórias na pele
Livro de estreia do moldávio Nicolai Lilin reconstrói, em narrativa fabular, comunidade criminosa numa terra de ninguém
FABIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL
Do lugar onde nasceu Nicolai
Lilin, até o nome é complexo e
fugidio: Transnístria.
Nem aparece nas enciclopédias como um país. É uma terra
de ninguém encravada no leste
europeu, que declarou independência em 1990 e vive num
limbo legal -a Moldávia diz
que é território seu, mas há outro governo que se declara autônomo, com apoio da Rússia.
A memória infantil de Lilin
numa comunidade criminosa
neste fim de mundo está descrita em "Educação Siberiana",
que a Alfaguara lança no Brasil.
O autor, um tatuador de 30
anos que lutou do lado russo na
Tchetchênia, hoje vive em Turim, na Itália, país onde o livro
teve boa acolhida e foi elogiado
por Roberto Saviano, do assemelhado "Gomorra".
Ambos retratam sem filtro o
submundo de máfias, a napolitana, no caso de Saviano, e a dos
urcas siberianos, no de Lilin.
Mas as semelhanças não vão
muito além. "Gomorra" é um livro-reportagem. A obra de Lilin, que ele define como um romance baseado em sua história
real, é fabular. Glorifica tanto o
crime, embaralhando violência
com dignidade, que chega a divertir, com seus "criminosos
bons e honestos".
O leitor segue a perspectiva
de uma criança encantada com
esses códigos de honra e de ética da sua comunidade bandida.
Os urcas, segundo Lilin criminosos deportados da Sibéria
para a Moldávia por Stálin nos
anos 1930, têm um tratado particular sobre armas: as "honestas" são para caça e devem ser
guardadas num altar; as "de pecado" têm fins exclusivamente
criminais, e ficam escondidas.
Todas as armas têm apelidos, as
pessoas também -tudo no universo de Lilin tem apelido.
Couve-flor
Os urcas de "Educação Siberiana" não podem dirigir a palavra a policiais. Se topam com
um, o ignoram, e à mulher do
criminoso cabe o papel de interlocução. Desprezam o dinheiro e não pronunciam o termo, substituído por "lixo" ou
"couve-flor". É sagrado o respeito a velhos e deficientes. Os
urcas possuem chapéus e canivetes típicos, seu ritual de chá é
único, e por aí vai.
"Tentei documentar a existência dos urcas, mas não achei
informação alguma, então decidi usar minhas lembranças
desse povo, tentando recuperar
o que foi essa comunidade um
dia", disse Lilin à Folha, em entrevista por e-mail.
As tatuagens, na cultura criminal siberiana, não podem ser
feitas à máquina -só à mão,
com agulhas. Lilin é todo tatuado e faz tatuagens, mas nega
que sobreviva da atividade, como diz a mídia italiana -algo
que seus editores não têm interesse em refutar, ao contrário.
E fica (ou se mostra) abespinhado se é indagado sobre as
suas. "Onde cresci, perguntar
sobre tatuagens pessoais era
uma ofensa. A tatuagem existe
para evitar palavras."
Ao tecer detalhes sobre a vida num lugar esquecido do
mundo, Lilin ganhou, junto
com aplausos, desconfiança. O
jornal "La Stampa" questionou
a veracidade de informações
históricas e culturais apresentadas no livro. Lilin diz que a
denúncia "não prova nada; é
como querer investigar a máfia
siciliana batendo de porta em
porta atrás do endereço do chefão e, sem consegui-lo, concluir
que a máfia não existe".
Para além de romantizar a
ética criminal, o livro traz também relatos violentos -brigas
das gangues que o narrador integrou, estupros no reformatórios onde esteve preso, assassinatos, vinganças. Lilin fala mal
de Deus e o mundo, georgianos,
ucranianos, americanos, comunistas, outras máfias russas.
Conta que recebeu ameaças
de morte e tem proteção policial. Só anda armado, o que
acha muito natural: "Venho de
uma comunidade paramilitar e
com tradição de caça. As armas
tiveram papel importante na
minha educação, eu as respeito, sei usá-las e tenho muitas."
Lilin deixou a Transnístria
aos 18 anos para lutar na
Tchetchênia. Há menos de cinco anos foi morar na Itália, onde já vivia sua mãe. Considera o
país sua nova pátria e escreveu
o livro em italiano. "Educação
Siberiana" teve 60 mil exemplares vendidos por lá, e seus
direitos negociados para 18 países e para o cinema.
Lilin lançará em breve seu
segundo livro, sobre a experiência na Tchetchênia, descrita de raspão no primeiro. Será
novamente, diz, uma ficção baseada em fatos reais.
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