São Paulo, sábado, 27 de março de 2010

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Crítica/CD/"Chopin The Nocturnes"

Nelson Freire grava Chopin histórico

Pianista mineiro lança, aos 65 anos, álbum duplo com ótima interpretação da íntegra dos "Noturnos" do compositor

SIDNEY MOLINA
CRÍTICO DA FOLHA

Conhecimento, lealdade, afeto: para Nelson Freire, Chopin (1810-1849) é um amigo muito próximo, com quem mantém relação viva pelo piano. E talvez o conjunto completo dos "Noturnos" -que o pianista mineiro acaba de lançar em CD duplo- seja, até aqui, sua mais completa tradução da arte do compositor polonês.
Por meio dos noturnos é possível acompanhar a trajetória musical completa de Chopin, que escreveu e publicou 18 obras com esse título no período de 1830 a 1846 (o álbum traz também duas peças que somente vieram à luz após a morte do artista).
Nas primeiras obras são perceptíveis as referências ao irlandês John Field (1782-1837) e ao "bel canto" de Vincenzo Bellini (1801-1835), mas já no op.15 n. 3 a música toma o partido da incompletude e generosamente cede o controle para a performance.
A hesitação que Nelson imprime intencionalmente ao tempo, à respiração ofegante das sentenças, às camadas de "piano" e "pianissimo", à capacidade de velar e "afastar o som de si" -como se as notas pudessem subir verticalmente do chão-, tudo concorre para essa poética do devir.
E, quando Chopin decide justapor uma escrita coral à primeira parte, não haverá lugar para o retorno do tema inicial: o noturno se lança adiante, rompendo a circularidade da forma ternária.
As duas peças que seguem (op. 27) tomam como centro a mesma altura (dó sustenido menor e ré bemol maior), e as "fioraturas" -ornamentações cadenciais de inspiração operística- da segunda pretendem fazer caber mais de 60 notas da mão direita em um compasso e meio.
Porém, nesse caso, os sentidos que poderiam emergir dessa compressão são deslocados pela leveza do inigualável "cantabile" de Nelson, que jamais interrompe a continuidade do discurso.
Virtuosismo e êxtase encontram espaço em outro par de noturnos consecutivos, a começar pelos intervalos em movimento paralelo do op. 37 n. 2. O op. 48 n. 1, por outro lado, instaura pouco a pouco uma crise entre melodia e acompanhamento, que atinge o ponto culminante no fortíssimo que precede a volta do tema inicial, agora contaminado por essa fratura: segundo o compositor pernambucano Willy Corrêa de Oliveira, são "acontecimentos" independentes, ondas com vida própria que recusam a textura homogênea da "melodia acompanhada" clássica.
Por não ser um ciclo organizado, os "Noturnos" recebem menos integrais do que os "Estudos" e os "Prelúdios". Mas há importantes referências, como os antológicos registros de Ivan Moravec, Claudio Arrau (1903-1991) e Arthur Rubinstein (1887-1982).
Nelson Freire chegou a iniciar uma versão nos anos 1970, mas, àquela altura, na "imaturidade" de seus 30 e poucos anos (ele completou 65 em outubro passado), não se sentiu preparado para levar adiante o projeto. Realizada somente agora -na plenitude de sua capacidade musical-, a gravação traduz, em menos de duas horas, essa arte crepuscular que Chopin desdobrou ao longo da vida.


CHOPIN THE NOCTURNES (CD DUPLO)

Artista: Nelson Freire
Lançamento: Decca
Quanto: R$ 49,90 em média
Avaliação: ótimo




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