São Paulo, Sábado, 27 de Março de 1999
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Cineasta holandês Joahn van der Keuken, um dos maiores do mundo, ganha retrospectiva no Rio e em São Paulo
Documentarista mostra que nem tudo é verdade

Noshka van der Lely/Divulgação
O cineasta Johan van der Keuken


BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Nem tudo é verdade no festival internacional de documentários É Tudo Verdade, que vai de 9 a 18 de abril, no Rio e em São Paulo. A começar pela retrospectiva do holandês Johan van der Keuken, 61. O próprio cineasta e fotógrafo garante que a única verdade de seus "documentários" é a sua presença por trás da câmera.
Seus filmes representam um dos pontos de vista mais originais e inteligentes sobre a idéia de "documentário". São obras de um olhar curioso, tentando arrancar pela simples observação um sentido do mundo (leia texto nesta página).
Van der Keuken falou à Folha por telefone, de Amsterdã, pouco antes de partir para Kathmandu (Nepal), onde filma parte de uma espécie de "crônica sobre a minha maneira de ver". Depois do Himalaia e da região do Sahel, no norte da África, o cineasta pretende filmar também no Rio e nos EUA.

Folha - Que é um documentário?
Johan van der Keuken -
Não me enquadro em nenhuma definição estrita. Estou interessado em dar uma forma ao entendimento da vida. Mas há uma coisa específica ao documentário que o distingue: as pessoas que você está filmando não podem tirar as máscaras ao final da filmagem. O principal de suas vidas está fora do filme. Há uma responsabilidade e uma tensão do cineasta em relação a elas. Você tem uma relação com os interesses delas na vida. Quando um ator volta para casa, vira uma outra pessoa. Você não tem nenhuma relação com seus interesses pessoais. No documentário, o personagem e a pessoa fora do filme são uma só. É claro que, quando essa pessoa está sendo filmada, ela se torna um personagem de ficção.
Folha - Do que falam seus filmes?
Van der Keuken -
O meu tema principal é o esforço de perceber a realidade e a impossibilidade de captá-la. Nesse sentido, o termo documentário é enganoso, porque dá a idéia de que se pode documentar a realidade. A única coisa que estou documentando é a minha própria presença, o fato de estar ali filmando com uma câmera. Essa é a única verdade do filme.
Folha - Como você escolhe os assuntos dos seus filmes?
Van der Keuken -
É muito intuitivo. Nos meus primeiros trabalhos, havia dois temas básicos: o cego, que tem de lutar para dar uma forma ao mundo; e o artista, o pintor ou o músico, que tem um dom muito forte ou disposição muito forte de captar os elementos do mundo. Há esses dois pólos da existência: a pessoa que tem uma incapacidade no contato com a informação e a que é hipersensível a algum tipo de informação, em seus estímulos sonoros ou visuais. Para mim, ambas têm uma incapacidade. Quando você é confrontado com a realidade, ela lhe escapa. Nesse sentido, até uma pessoa altamente visual é cega. Como cineasta, luto para produzir uma imagem que possa conter alguma verdade, ainda que por poucos segundos.
Folha - Em "Face Value", a impressão é de que você faz de tudo para tirar um sentido desses rostos que, no fundo, são como paredes.
Van der Keuken -
Dizem que o rosto é o espelho da alma. Minha idéia era que o rosto não tem nada de espelho da alma. Quando você olha para os rostos das pessoas, o que vê é um grande mistério.
Folha - Nos seus filmes, não há explicação ou contextualização. Você apenas mostra as coisas, o que é raro em documentários.
Van der Keuken -
Uma das coisas mais limitantes na idéia de documentário é a de que você parece ter que ser capaz de explicar tudo no mundo. A explicação vem antes do entendimento. Você entende? Acho mais interessante tentar ver as coisas de uma forma nova, com o sentimento de que você não pode entender realmente. A explicação mata esse frescor e essa emoção, porque vem cedo demais.
Folha - Seus filmes parecem fotografias em movimento. Você também é fotógrafo. O que você quer mostrar com os filmes que não pode ser mostrado pela fotografia?
Van der Keuken -
O que me interessa é o momento entre a fixidez e o movimento, o momento em que o movimento começa, entre duas imagens. O que sempre me impressionou é que o cinema, mesmo com uma imagem fixa, imóvel, ainda assim, pela duração do tempo da projeção, é muito diferente de uma fotografia. Você passa segundos ou minutos olhando para aquela imagem, esperando pelo movimento. Há o elemento da espera. O que me interessa é a área onde o movimento ainda não está, mas está prestes a começar, ou onde o movimento se interrompeu e nós esperamos que recomece. Mas não acho que meus filmes não sejam narrativos. Podem ser como os restos de uma história ou o começo de uma história que só vai acontecer fora do filme.
Folha - Quanto dos seus filmes é planejado e quanto vem do acaso?
Van der Keuken -
É a mistura dos dois. Quando começo, preciso de uma idéia da forma geral. Em "Face Value" tinha a idéia de fazer um filme de close-ups. Era uma idéia formal. Em "Amsterdam Global Village", há o sentimento de um movimento circular no nível da água e também um movimento aéreo, quando voamos para diferentes países. Esses movimentos foram inspirados pelas formas dos canais de Amsterdã, em círculos concêntricos. A partir dessas formas, posso passar a encontrar e falar com as mais diferentes pessoas.
Folha - Quando essas pessoas falam, os diálogos são espontâneos?
Van der Keuken -
Converso com as pessoas antes sobre suas histórias. É claro que planejamos e filmamos os diálogos em plano e contraplano, como num filme de ficção, mas a emoção pode se tornar tão grande que não tenho mais controle. Você não pode captar a realidade. Então, tem de fazer uma construção na qual possa captar um sentido de realidade.


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