São Paulo, Sábado, 27 de Março de 1999
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RESENHA
Adélia Prado mostra versatilidade em prosa e verso

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Dois novos livros de Adélia Prado. De novo a versatilidade de escrever bem em verso e em prosa. A coletânea de poemas "Oráculos de Maio" e o romance "Manuscritos de Felipa" são as novidades que chegam juntas às livrarias no dia 3 de abril para ratificar uma reputação poética que se firmou desde o primeiro lançamento, "Bagagem" (1976).
Adélia Prado, 63, ex-professora primária e de filosofia para o segundo grau, mãe, avó -ou, como ela própria se define em uma de suas personagens, "uma dona-de-casa a quem associam pão de queijo e novenas"-, completa agora 11 livros publicados, numa obra de grande latitude de pensamento e de palavra.
Mantêm-se nesses dois novos textos os motivos mais poderosos de seu estilo: a tangência da narrativa com a poesia, a espontaneidade de expressão de uma linguagem poética que lembra a poesia popular (especialmente pela matéria palpável dos temas corriqueiros), mas que a supera, movida principalmente por uma inspiração de fundo religioso.
Adélia Prado é, por um lado, a Christina Rossetti de nosso tempo e em português. Essa poeta inglesa, nascida em 5 de dezembro de 1830, é hoje considerada a grande poeta de vocação religiosa do século 19 na Inglaterra: "Lord, Thou Thyself art Love and/only Thou" (Senhor, Tu mesmo és Amor e somente Tu", diz a poesia de Rossetti. "Allow my plea!/for if Thou disallow" (Aceita a minha súplica! Pois se rejeitas).
"No second fountain can I find but Thee; no second hope and help is left to me." (Nenhuma outra fonte posso encontrar senão a Ti; nenhuma outra esperança ou assistência resta a mim)
Do lado de cá do Equador, nesses tempos mais mundanos, e nessa língua menos nobre (graças a Deus), Adélia Prado responde: "Não há descanso aqui,/estamos no exílio,/edificando móbiles na areia./Os galos sabem,/cantam fora de hora/querendo apressar o dia,/tem deus, tem deus, tem deus (...)".
A diferença é que Adélia Prado (católica) não tem a inclinação monástica da puritana (e anglicana) Christina Rossetti. O texto de Adélia tem corpo, um erotismo de rara beleza ("Meu marido gosta muito de sexo,/mas é também um esposo/capaz de abstinências prolongadas").
Corpo, amor e palavra são a via concreta de uma busca moral e espiritual que vai percorrendo os evangelhos (numa espécie de "Viação São Cristóvão", como é chamado um dos poemas).
Também nesses dois lançamentos da autora está uma das chaves de sua literatura: a reverência a um Deus seu e ao próprio ato de escrever são uma só e única coisa. Os poemas de "Oráculos de Maio" vão do 8 ao 80 na consulta a essa divindade-poesia.
"O Poeta Ficou Cansado" (título de um dos poemas) de ser o "Ajudante de Deus" (título de outro poema). O poeta dialoga com seu deus: "Ó Deus,/me deixa trabalhar na cozinha, nem vendedor nem escrivão,/me deixa fazer Teu pão./Filha, diz-me o Senhor, eu só como palavras".
Em "Manuscritos de Felipa", a mesma reflexão: "Pois é, meu Deus, pois é, meu Senhor, meu Pai Santo, quem sabe se eu escrever sem parar, dia e noite, como um capinador capina sua roça (...). Penetrai-me, ó Espírito Santo (...), falai-me com uma tal voz que mais tenha dela certeza que de minha própria pele: Felipa, você é uma artista, sua roça é aqui, pega seu caderno, seu lápis de boa ponta e capina sem preguiça".
"Manuscritos de Felipa" é um diário assistemático, em que os fatos, os sonhos e as impressões da vida têm peso igual. Um diário "manuscrito" porque entranhado dos borrões, das idas e vindas, dos erros e acertos, dos rabiscos e dos insights da protagonista e narradora Felipa, uma mulher nos conflitos da "terceira idade".
Mas o tema do romance é menos a velhice do que um estado qualquer de nostalgia de uma vida inteira: "Faz muito tempo que estou no mundo", diz a narradora, "certamente nos acomete a todas este arrepio, este fundo no plexo quando os peitos secam, o útero dorme e uma fadiga de que nem no damos conta provoca os que nos rodeiam: você está com muito má postura, o que é isto? Sabemos do que se trata: chegou o futuro".
Nos dois livros, os temas também se tocam, ecoam de um para outro: a saudade da mãe, da infância, do mês de maio como o tempo da bonança, do fim do "desassossego de narrar". Ainda bem para os leitores de Adélia, que ficamos aqui com esse duplo presente.

Livro: Manuscritos de Felipa
Autora: Adélia Prado
Quanto: R$ 17 (161 págs.)

Livro: Oráculos de Maio
Autora: Adélia Prado
Quanto: R$ 15 (131 págs.)
Lançamentos: Siciliano



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