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RESENHA
Adélia Prado mostra versatilidade em prosa e verso
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
Dois novos livros de Adélia Prado. De novo a versatilidade de escrever bem em verso e em prosa. A
coletânea de poemas "Oráculos de
Maio" e o romance "Manuscritos
de Felipa" são as novidades que
chegam juntas às livrarias no dia 3
de abril para ratificar uma reputação poética que se firmou desde o
primeiro lançamento, "Bagagem"
(1976).
Adélia Prado, 63, ex-professora
primária e de filosofia para o segundo grau, mãe, avó -ou, como
ela própria se define em uma de
suas personagens, "uma dona-de-casa a quem associam pão de queijo e novenas"-, completa agora 11
livros publicados, numa obra de
grande latitude de pensamento e
de palavra.
Mantêm-se nesses dois novos
textos os motivos mais poderosos
de seu estilo: a tangência da narrativa com a poesia, a espontaneidade de expressão de uma linguagem
poética que lembra a poesia popular (especialmente pela matéria
palpável dos temas corriqueiros),
mas que a supera, movida principalmente por uma inspiração de
fundo religioso.
Adélia Prado é, por um lado, a
Christina Rossetti de nosso tempo
e em português. Essa poeta inglesa,
nascida em 5 de dezembro de 1830,
é hoje considerada a grande poeta
de vocação religiosa do século 19
na Inglaterra: "Lord, Thou Thyself
art Love and/only Thou" (Senhor,
Tu mesmo és Amor e somente
Tu", diz a poesia de Rossetti.
"Allow my plea!/for if Thou disallow" (Aceita a minha súplica! Pois
se rejeitas).
"No second fountain can I find
but Thee; no second hope and help
is left to me." (Nenhuma outra
fonte posso encontrar senão a Ti;
nenhuma outra esperança ou assistência resta a mim)
Do lado de cá do Equador, nesses
tempos mais mundanos, e nessa
língua menos nobre (graças a
Deus), Adélia Prado responde:
"Não há descanso aqui,/estamos
no exílio,/edificando móbiles na
areia./Os galos sabem,/cantam fora de hora/querendo apressar o
dia,/tem deus, tem deus, tem deus
(...)".
A diferença é que Adélia Prado
(católica) não tem a inclinação
monástica da puritana (e anglicana) Christina Rossetti. O texto de
Adélia tem corpo, um erotismo de
rara beleza ("Meu marido gosta
muito de sexo,/mas é também um
esposo/capaz de abstinências prolongadas").
Corpo, amor e palavra são a via
concreta de uma busca moral e espiritual que vai percorrendo os
evangelhos (numa espécie de
"Viação São Cristóvão", como é
chamado um dos poemas).
Também nesses dois lançamentos da autora está uma das chaves
de sua literatura: a reverência a um
Deus seu e ao próprio ato de escrever são uma só e única coisa. Os
poemas de "Oráculos de Maio"
vão do 8 ao 80 na consulta a essa
divindade-poesia.
"O Poeta Ficou Cansado" (título
de um dos poemas) de ser o "Ajudante de Deus" (título de outro
poema). O poeta dialoga com seu
deus: "Ó Deus,/me deixa trabalhar
na cozinha, nem vendedor nem escrivão,/me deixa fazer Teu pão./Filha, diz-me o Senhor, eu só como
palavras".
Em "Manuscritos de Felipa", a
mesma reflexão: "Pois é, meu
Deus, pois é, meu Senhor, meu Pai
Santo, quem sabe se eu escrever
sem parar, dia e noite, como um
capinador capina sua roça (...). Penetrai-me, ó Espírito Santo (...), falai-me com uma tal voz que mais
tenha dela certeza que de minha
própria pele: Felipa, você é uma artista, sua roça é aqui, pega seu caderno, seu lápis de boa ponta e capina sem preguiça".
"Manuscritos de Felipa" é um
diário assistemático, em que os fatos, os sonhos e as impressões da
vida têm peso igual. Um diário
"manuscrito" porque entranhado
dos borrões, das idas e vindas, dos
erros e acertos, dos rabiscos e dos
insights da protagonista e narradora Felipa, uma mulher nos conflitos da "terceira idade".
Mas o tema do romance é menos
a velhice do que um estado qualquer de nostalgia de uma vida inteira: "Faz muito tempo que estou
no mundo", diz a narradora, "certamente nos acomete a todas este
arrepio, este fundo no plexo quando os peitos secam, o útero dorme
e uma fadiga de que nem no damos
conta provoca os que nos rodeiam:
você está com muito má postura, o
que é isto? Sabemos do que se trata: chegou o futuro".
Nos dois livros, os temas também se tocam, ecoam de um para
outro: a saudade da mãe, da infância, do mês de maio como o tempo
da bonança, do fim do "desassossego de narrar". Ainda bem para
os leitores de Adélia, que ficamos
aqui com esse duplo presente.
Livro: Manuscritos de Felipa
Autora: Adélia Prado
Quanto: R$ 17 (161 págs.)
Livro: Oráculos de Maio
Autora: Adélia Prado
Quanto: R$ 15 (131 págs.)
Lançamentos: Siciliano
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