São Paulo, sábado, 27 de abril de 2002

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"DRIBLANDO A CENSURA"

Autor viveu nas barbas do regime

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Este livro não deixa de ser engraçado, embora trate de uma coisa triste e melancólica: a censura sobre as artes e os espetáculos durante o regime militar instalado em 64.
O autor, Ricardo Cravo Albin, trabalhou na Embrafilme e no Instituto Nacional de Cinema. Foi roteirista de telenovela da Rede Globo desde 1975, quando recebeu, em 1979, a incumbência do todo-poderoso executivo da TV platinada, J.B. de Oliveira Sobrinho, o Boni, quem o cineasta Glauber Rocha considerava o czar da Rede Globo, de integrar o Conselho Superior de Censura em Brasília, a fim de paradoxalmente aliviar, evitar ou driblar a censura do próprio governo.
Transcrevo do livro o convite que tem aura épica feito por Boni, o qual "hegelianamente" já falava em "sociedade civil", expressão que não sai da boca da oposição e de um certo tipo de esquerda:
"O convite que te faço em nome da Globo não é fácil e pode ser mal compreendido. Mas é fundamental para a defesa da liberdade de expressão. Foi o Otto Lara Resende o primeiro a ser indicado, mas teve que recusar porque alega problemas de saúde. Trata-se da representação da sociedade civil para lutar contra a cretinice dessa censura que nos tumultua e nos castra. Você vai lutar, nas barbas do inimigo, dentro do conselho instituído pelo ministro da Justiça e que já funciona há dois meses ao lado da sala do Petrônio Portella".
O livro se resume aos desdobramentos desse convite (de 1979 a 1989), período em que Albin fez 134 viagens do Rio de Janeiro a Brasília com objetivo de, no interior do aparelho federal, combater a censura como se fosse um agente iluminista e esclarecido infiltrado a favor da liberdade intelectual de expressão e opinião. Por causa desse seu trabalho, o autor do livro é elogiado por quem sofreu censura como o cineasta Wladimir Carvalho.
Somos informados sobre o modo da censura funcionar, a exemplo da telenovela "Chega Mais", que foi vítima do corte por usar as palavras "tô grilada e de saco cheio". Ou o programa do Chacrinha, que deixava a censura enraivecida por conta dos closes nas chacretes e por perguntar: "Vocês querem mandioca?".
A censura é realmente abominável, mas nem sempre o que é objeto da censura tem valor estético, ou seja, revolucionário e subversivo, assim como não é preciso ser preso ou torturado para sacar o segredo do país.
Algumas telenovelas foram mutiladas pela censura, mas isso não quer dizer que a censura estava de olho atento no caráter dissonante ou diruptivo das telenovelas. É preciso não perder de mira que em 1989, com a primeira eleição presidencial sob cobertura televisiva, quem chegou ao poder foi a telenovela do caçador de marajás.
A telenovela representou o papel midiático de cocaína dos pobres, mais ou menos o equivalente do ópio da religião a que se referiu Karl Marx. Destarte, há uma ambiguidade terrível na "saga", como diz o autor, a respeito da TV na década de 70. É que a TV Globo nasceu sob os apupos e benesses do golpe de 64, de modo que, a rigor, é temeroso falar aí em censura. Ao contrário, dir-se-ia sem nenhum intuito provocativo que os "anos de chumbo" aconteceram para implantar o sistema televisivo, que é o principal componente da dominação política no Brasil.
E mais: com a chamada abertura democrática, a censura entre nós se tornou civilizatória, porque é o povo e a nação que agora estão sob a mira da censura.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda"


Driblando a Censura    
Autor: Ricardo Cravo Albin
Editora: Gryphus
Quanto: R$ 38 (282 págs.)




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