São Paulo, quarta-feira, 27 de abril de 2005

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MARCELO COELHO

Grandeza e miséria das piadas de argentino

Vai ver que estou agindo por interesse próprio, mas não acho certo que alguém vá para a cadeia simplesmente por causa do que escreveu ou disse. Ainda que xingamentos racistas sejam uma forma odiosa de agressão, considero que uma boa multa e algum tipo de sanção pesada no plano da Justiça Desportiva sejam suficientes, caso fique comprovada a culpa do jogador argentino Leandro Desábato.
A notícia já ficou meio antiga: ele foi acusado de insultar o brasileiro Grafite, do modo mais preconceituoso possível, durante um jogo da Taça Libertadores. Mas não vou comentar diretamente o episódio.
Até porque fico um pouco em dúvida. Embora tenha havido exagero no caso, senti uma ponta de orgulho ao pensar que, diante da opinião pública mundial, o Brasil deixou claro que racismo, aqui, é tratado com tolerância zero... Ou que, pelo menos, existem instrumentos legais severos para coibir o preconceito.
Deixo o assunto nesse pé, convencendo-me, com certo alívio, de que, afinal, não preciso decidir nada de uma vez por todas. E o tema deste artigo é outro. Topei com ele numa banca de jornal. Trata-se de uma revista, ou melhor, de um livrinho, de cerca de 80 páginas, produzido pela On Line Editora e dedicado exclusivamente a uma paixão brasileira: as piadas de argentino.
São 478 piadas, segundo a capa, "para você morrer de rir". Aqui vão alguns exemplos.
"O que dá um cruzamento de um paraibano com um argentino? Resposta: um zelador que acha que é dono do prédio."
"O que se deve jogar para um argentino que está se afogando? Resposta: o resto da família."
"Por que não há terremotos na Argentina? Resposta: porque nem a terra os engole."
"O que significa uma Kombi com um argentino caindo num penhasco? Desperdício: a Kombi poderia estar cheia."
"Por que os argentinos não brincam de esconde-esconde? Porque ninguém os procura."
Não cito as piores de todas nem as mais características. Com exceção da piada sobre o zelador, que leva a efeito uma dupla agressão, os exemplos acima não insistem na tecla da arrogância, do ego inflado que se costuma atribuir aos argentinos.
O que me pareceu curioso nessas piadas -e há muitas outras do mesmo tipo- foi o fato de expressarem um tipo de ódio ou de desprezo bastante indeterminado. Não apontam um defeito específico (real ou suposto) dos argentinos, mas servem apenas para dar vazão a uma inimizade que poderia, se assim quisessem os organizadores do volume, voltar-se contra japoneses, nordestinos, gaúchos, cariocas, ingleses, negros ou... brasileiros em geral.
Muitas das piadas do livro, aliás, parecem adaptações de velhos sucessos contra gaúchos ou campineiros. Houve uma época em que virou moda chamar de gays os nascidos em Campinas ou Pelotas: no livro, os argentinos ficam com essa fama também, numa contradição com o estereótipo mais comum a seu respeito. Outras anedotas os acusam de burrice, o que serve mais para atualizar antiqüíssimas piadas de português do que para extravasar nossas críticas ao país irmão.
Mas esse deslocamento, essa "troca de vítimas", não deixa de ser interessante. Posso imaginar que tenha existido ressentimento contra o colonizador português e que, aos poucos, isso tenha diminuído. É possível que, contra os gays, as piadas tenham um efeito psicológico claro: o de exorcizar os fantasmas que ameaçam a própria identidade sexual do sujeito que se acredita "macho 100%".
Mas o que os argentinos fizeram contra nós, além de ganhar algumas partidas de futebol? E qual o fantasma que, debochando deles, queremos expulsar de nós mesmos?
Seria preciso pesquisar, mas acho que o início das piadas de argentino coincide com nosso turismo de massa rumo a Buenos Aires e Bariloche, a partir dos anos 70. E com a crise do milagre econômico, pouco depois.
Defrontamo-nos com uma dupla experiência. Primeiro, pudemos tomar contato com uma cidade incrivelmente mais "civilizada" e "européia" do que as nossas. O aspecto mais antigo, mais estável e refinado de Buenos Aires -e de seus pedestres de terno e gravata- pode ter substituído, em nosso imaginário, o lugar do "povo mais velho", do "passado europeu", ocupado pelos portugueses.
A animosidade contra esse passado me parece menos importante, contudo, do que um outro sentimento, a saber, o medo da nossa própria arrogância, da nossa própria mania de grandeza. Todos os ideais de "país do futuro", de "Brasil grande" etc., vigentes até a década de 80, foram sendo amargamente contestados pelos fatos. Conhecemos crises e mais crises na economia, muito semelhantes às vividas pela Argentina.
É assim que, rindo das pretensões de superioridade do país vizinho, de alguma forma esquecemos o ridículo das nossas.
Preconceito contra argentinos? O termo tem muitos significados. Mas doses de raiva certamente existem. Algumas das piadas do livrinho que comprei são puro xingamento, coisa impublicável. Outras são até engenhosas ou não necessariamente antipáticas. "Segundo recentes estatísticas, de cada dez argentinos, 11 se sentem superiores aos outros." "Por que os argentinos saem para a rua quando está relampejando? Porque dizem que Deus está tirando fotos deles."
Talvez, nas piadas de argentinos, estejamos tirando fotos de nós mesmos também. E é possível que Leandro Desábato -sem querer desculpar o caso do jogador- esteja pagando por um racismo que é, acima de tudo, propriedade nossa.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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