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MARCELO COELHO
Grandeza e miséria das piadas de argentino
Vai ver que estou agindo por
interesse próprio, mas não
acho certo que alguém vá para a
cadeia simplesmente por causa
do que escreveu ou disse. Ainda
que xingamentos racistas sejam
uma forma odiosa de agressão,
considero que uma boa multa e
algum tipo de sanção pesada no
plano da Justiça Desportiva sejam suficientes, caso fique comprovada a culpa do jogador argentino Leandro Desábato.
A notícia já ficou meio antiga:
ele foi acusado de insultar o brasileiro Grafite, do modo mais preconceituoso possível, durante um
jogo da Taça Libertadores. Mas
não vou comentar diretamente o
episódio.
Até porque fico um pouco em
dúvida. Embora tenha havido
exagero no caso, senti uma ponta
de orgulho ao pensar que, diante
da opinião pública mundial, o
Brasil deixou claro que racismo,
aqui, é tratado com tolerância zero... Ou que, pelo menos, existem
instrumentos legais severos para
coibir o preconceito.
Deixo o assunto nesse pé, convencendo-me, com certo alívio, de
que, afinal, não preciso decidir
nada de uma vez por todas. E o
tema deste artigo é outro. Topei
com ele numa banca de jornal.
Trata-se de uma revista, ou melhor, de um livrinho, de cerca de
80 páginas, produzido pela On Line Editora e dedicado exclusivamente a uma paixão brasileira: as
piadas de argentino.
São 478 piadas, segundo a capa,
"para você morrer de rir". Aqui
vão alguns exemplos.
"O que dá um cruzamento de
um paraibano com um argentino? Resposta: um zelador que
acha que é dono do prédio."
"O que se deve jogar para um
argentino que está se afogando?
Resposta: o resto da família."
"Por que não há terremotos na
Argentina? Resposta: porque nem
a terra os engole."
"O que significa uma Kombi
com um argentino caindo num
penhasco? Desperdício: a Kombi
poderia estar cheia."
"Por que os argentinos não
brincam de esconde-esconde?
Porque ninguém os procura."
Não cito as piores de todas nem
as mais características. Com exceção da piada sobre o zelador, que
leva a efeito uma dupla agressão,
os exemplos acima não insistem
na tecla da arrogância, do ego inflado que se costuma atribuir aos
argentinos.
O que me pareceu curioso nessas piadas -e há muitas outras
do mesmo tipo- foi o fato de expressarem um tipo de ódio ou de
desprezo bastante indeterminado. Não apontam um defeito específico (real ou suposto) dos argentinos, mas servem apenas para dar vazão a uma inimizade
que poderia, se assim quisessem
os organizadores do volume, voltar-se contra japoneses, nordestinos, gaúchos, cariocas, ingleses,
negros ou... brasileiros em geral.
Muitas das piadas do livro,
aliás, parecem adaptações de velhos sucessos contra gaúchos ou
campineiros. Houve uma época
em que virou moda chamar de
gays os nascidos em Campinas ou
Pelotas: no livro, os argentinos ficam com essa fama também, numa contradição com o estereótipo
mais comum a seu respeito. Outras anedotas os acusam de burrice, o que serve mais para atualizar antiqüíssimas piadas de português do que para extravasar
nossas críticas ao país irmão.
Mas esse deslocamento, essa
"troca de vítimas", não deixa de
ser interessante. Posso imaginar
que tenha existido ressentimento
contra o colonizador português e
que, aos poucos, isso tenha diminuído. É possível que, contra os
gays, as piadas tenham um efeito
psicológico claro: o de exorcizar
os fantasmas que ameaçam a
própria identidade sexual do sujeito que se acredita "macho
100%".
Mas o que os argentinos fizeram contra nós, além de ganhar
algumas partidas de futebol? E
qual o fantasma que, debochando deles, queremos expulsar de
nós mesmos?
Seria preciso pesquisar, mas
acho que o início das piadas de
argentino coincide com nosso turismo de massa rumo a Buenos
Aires e Bariloche, a partir dos
anos 70. E com a crise do milagre
econômico, pouco depois.
Defrontamo-nos com uma dupla experiência. Primeiro, pudemos tomar contato com uma cidade incrivelmente mais "civilizada" e "européia" do que as nossas. O aspecto mais antigo, mais
estável e refinado de Buenos Aires
-e de seus pedestres de terno e
gravata- pode ter substituído,
em nosso imaginário, o lugar do
"povo mais velho", do "passado
europeu", ocupado pelos portugueses.
A animosidade contra esse passado me parece menos importante, contudo, do que um outro sentimento, a saber, o medo da nossa
própria arrogância, da nossa própria mania de grandeza. Todos os
ideais de "país do futuro", de
"Brasil grande" etc., vigentes até a
década de 80, foram sendo amargamente contestados pelos fatos.
Conhecemos crises e mais crises
na economia, muito semelhantes
às vividas pela Argentina.
É assim que, rindo das pretensões de superioridade do país vizinho, de alguma forma esquecemos o ridículo das nossas.
Preconceito contra argentinos?
O termo tem muitos significados.
Mas doses de raiva certamente
existem. Algumas das piadas do
livrinho que comprei são puro
xingamento, coisa impublicável.
Outras são até engenhosas ou não
necessariamente antipáticas. "Segundo recentes estatísticas, de cada dez argentinos, 11 se sentem
superiores aos outros." "Por que
os argentinos saem para a rua
quando está relampejando? Porque dizem que Deus está tirando
fotos deles."
Talvez, nas piadas de argentinos, estejamos tirando fotos de
nós mesmos também. E é possível
que Leandro Desábato -sem
querer desculpar o caso do jogador- esteja pagando por um racismo que é, acima de tudo, propriedade nossa.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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