São Paulo, quarta-feira, 27 de abril de 2005

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ANÁLISE

Autor tirou Paraguai da terra da ficção

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

O escritor norte-americano Donald Barthelme é autor de um conto chamado "Paraguay" em que diz, a certa altura: "Assim, encontrei-me numa terra estranha". O país latino-americano torna-se, na narrativa, sinônimo de irrealidade. Uma visão ficcional, distorcida se a gente quiser, mas não muito diferente daquela que nós, brasileiros, adquiríamos na escola ao ler sobre a Guerra do Paraguai.
Existe, contudo, um Paraguai verdadeiro, um país sofrido e pobre, em cuja capital encontrei há três anos esta figura verdadeiramente lendária da literatura hispânica Augusto Roa Bastos, de biografia tão tumultuada quanto a história de seu país.
Nascido em Assunção, era filho de um pai aristocrático e autoritário e de uma mãe suave e gentil que era grande leitora e o iniciou na literatura. Fugiu de casa e, ainda adolescente, participou de guerra contra a Bolívia. Anos mais tarde percorreu a Europa, trabalhando como jornalista. Regressou em 1947, mas teve de se exilar por causa da ditadura.
Ficou fora de seu país um longo período e exerceu vários ofícios, inclusive de camareiro, vendedor ambulante e carteiro, mas nunca abandonou a literatura, escrevendo para jornais, teatro e cinema.
Leitor voraz, Roa Bastos estava familiarizado com as obras de Rilke, Valéry, Cocteau, Eluard, Breton, Aragon e, especialmente, Faulkner. Não surpreende, portando, que cedo tenha se encaminhado para a ficção. Em 1941 publicou sua primeira novela, "Fulgencio Miranda", que obteve um prêmio literário. "El Trueno entre las Hojas", de contos, foi publicado em 1953. Em 1960, aparece "Hijo de Hombre", uma obra sobre os desmandos do poder e à qual se seguiu aquela que é, sem dúvida, sua obra-prima: "Eu, o Supremo", baseada na história de Gaspar Rodríguez de Francia, ditador do Paraguai por 26 anos.
Trata-se de uma meditação sobre aquele que é o tema favorito de Roa Bastos, o poder, "uma situação que contraria qualquer lógica e que é o produto de uma sociedade doente", segundo suas palavras. Autodenominado "o Supremo", Francia declarou-se ditador perpétuo e governou o Paraguai como um feudo durante a primeira metade do século 19.
O projeto, iniciado em 1967, nasceu de um convite de Carlos Fuentes e Vargas Llosa para que Roa Bastos escrevesse um capítulo de um livro que se chamaria "Los Padres de la Patria" e que não chegou a se materializar. Mas a idéia vingou em três obras memoráveis, que incluem, além do livro de Roa Bastos (1974), "O Recurso do Método", de Alejo Carpentier (morto recentemente), e "O Outono do Patriarca", de García Márquez, na qual a típica figura do caudilho é vista pelo realismo mágico que projetou a literatura do continente nos anos 60.
"Eu, o Supremo", com uma redação não convencional, distribuída por vários narradores, não é de fácil leitura, mas se transformou num clássico e consagrou o autor. Não é de admirar que seus livros, mais de duas dezenas, em vários gêneros, tenham sido amplamente traduzidos.
O encontro literário ao qual compareci girava, merecidamente, em torno de Roa Bastos. Homem modesto, afável, que, através de sua sofrida vida e de sua grandiosa obra, provou que o Paraguai (ao contrário do que imagina Barthelme) realmente existe.


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