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"Época" é a neutralidade da churrascaria
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
As Organizações Globo lançaram esta semana uma revista semanal para concorrer com
"Veja" e "Isto É". Trata-se, como o leitor já está sabendo, de
"Época". A propaganda foi intensa. A expectativa, pelo menos no meio jornalístico, era
fremente, desnorteada e cabal
-como, aliás, costumam ser
as coisas no meio jornalístico.
Também é próprio dos jornalistas o vezo da precipitação.
Talvez seja errado julgar a revista pelo seu primeiro número. O primeiro número de "Veja", disse-me um jornalista experiente, foi fraquíssimo. Tento avaliar "Época", então, abstendo-me de juízos de qualidade mais diretos.
O grande fato jornalístico da
semana passada foi o tumulto
em Brasília. Houve 20 feridos.
Na televisão, vi Jair Meneguelli
atuando de bombeiro. Enquanto o "pau comia", ACM
estava recebendo em palácio a
Rainha da Bergamota. Eduardo Suplicy teve a calça rasgada
por um rottweiler da PM. A
PM está sob comando do petista Cristóvam Buarque.
Que prato cheio para jornalistas! Quais foram os responsáveis pelo tumulto? Que tal
fotos dos "baderneiros"? Como
não entrevistar Meneguelli?
Seria bom ver uma cena do encontro de ACM com a Rainha
da Bergamota. E o que é bergamota? E qual o controle de
Cristóvam Buarque sobre a polícia? E balas de borracha? Como são? Dóem? No setor de serviços: como criar um rottweiler? Qual o tecido da calça de
Suplicy? Já imaginou se fosse
importado da Indonésia? Por
falar nisso, quais os deputados
mais elegantes do Congresso?
Raciocino como editor de revista semanal: assuntos como
os acima são típicos de revista.
"Época", "Veja" e "Isto É" optaram por não dar os tumultos
na capa. Há nisso uma decisão
política, que não discuto. Melhor considerar tudo aquilo
um episódio isolado do que
empenhar-se na teoria de que
o país está "à beira do caos".
Mas cabe uma análise mais
detalhada de como "Época"
tratou o episódio. Toda a batalha campal coube em "Isto É",
apesar de não terem usado o
assunto na capa, abriram textos e fotos bem grandes na seção de política.
Noto aqui um primeiro ponto relevante. Se as três revistas
obedeceram a uma mesma decisão estratégica -não dar o
tumulto na capa-, a revista
das Organizações Globo tem
como característica levar a decisão a suas últimas consequências. Foi quem mais exagerou, quem mais deixou explícita essa decisão.
O microtexto a respeito do
tumulto era, em "Época", um
"box" dentro de uma reportagem sobre o MST. Isso vale ser
lido em detalhe. Como título,
temos: "Uma organizada fábrica de conflitos". O subtítulo
é: "Saques no sertão e tensão
nos canaviais. Por trás disso
há uma eficiente estrutura nacional".
Só essas frases dariam páginas de análise. Tento abreviar.
Quando o adjetivo é anteposto
ao substantivo -"uma organizada fábrica de conflitos",
em vez de "uma fábrica de conflitos organizada"- há algo
de elogioso, e não de denunciante, na frase. Esse efeito elogioso é logo abandonado: vem
aí "saques no sertão" e, de forma mais neutra, "tensão" nos
canaviais. O leitor fica esperando. "Por trás disso..." (o leitor espera, conspiratório, uma
denúncia: a-há...!), mais um
elogio: "há uma eficiente estrutura nacional".
Ou seja, o MST poderia aparecer num programa do Sebrae
em favor da microempresa.
Mas não sejamos tão otimistas. Ainda que dentro de um
espírito positivo e otimista -o
MST é o "Gente que Faz"-, é
preciso alertar contra os perigos de suas iniciativas. Só que
os perigos aparecem por interposta pessoa. Faço a leitura do
primeiro parágrafo do texto.
"O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, dono da sigla MST" (eis aí o princípio da propriedade privada
reafirmado) "tem provocado
alguns pesadelos e muitas
preocupações em Brasília."
No espírito da mais alta neutralidade, portanto, "Época"
transfere a Brasília pesadelos e
preocupações que deveriam ser
as de todo cidadão, se o que está em jogo é a ordem vigente.
Mas "Época" não quer ser
"porta-voz de todo cidadão",
por três motivos: isso a tornaria "parcial", isso é a função de
"Veja", e isso é a função de
Fernando Henrique.
De modo que a revista começa assumindo o ponto de vista
do governo para narrar os tumultos, mas atribui esse ponto
de vista não a si mesma, e sim
"a Brasília". Tudo, para "Época", reduziu-se a "um tumulto
de pequenas proporções" e "em
poucas horas tudo estava sob
controle". Mas os órgãos de segurança, diz a revista, "temem
o pior".
Prossigo. O segundo parágrafo da matéria ouve o general
Alberto Cardoso, secretário do
ex-SNI. Ele apostava num arrefecimento dos saques. "Época" se mostra "independente"
e "crítica" em sua reverente escuta dos órgãos de segurança.
Corajosamente, diz que Cardoso "falhou". Há aqui o eco
de "Veja errou", célebre bordão com que a revista da Abril
respondia a qualquer carta reclamando de injustiças.
A "falha" de Cardoso põe lenha na fogueira e acentua o vigor jornalístico de "Época".
Mas esse vigor jornalístico não
pode durar muito, pois a imparcialidade é seu valor fundamental. Segue-se uma frase
de Vicente Chelotti, diretor-geral da Polícia Federal, pregando a prisão dos líderes do MST.
"Exagero", responde "Época".
A imparcialidade, aqui, corresponde a neutralizar os
acontecimentos.
Seguem-se mais elogios ao
MST. O movimento "tem faro
para perseguir os dramas e
mazelas sociais do país. Explora-os como nenhum outro segmento político, e sua maior
virtude talvez seja revelá-los".
Eis o MST como uma espécie
de imprensa que "Época" gostaria de ser. Só que não consegue.
"Muitas vezes -como pensa
tanta gente dentro e fora do
governo- seus militantes extrapolam e põem em risco a ordem estabelecida, que é democrática." O suposto alerta de
"Época", atribuído a "tanta
gente" que está "dentro e fora
do governo" (penso novamente em Roberto Marinho), é repetido algumas linhas depois...
pelo próprio governo: "O general Alberto Cardoso admite"
(verbo imparcializador): "Eles
são úteis quando ajudam a
mostrar os problemas que temos... mas só que não podem ir
contra as instituições".
Ou seja, a revista da Globo
nada fez senão parafrasear o
general numa aura de neutralidade e até de elogios ao MST.
Curiosa imparcialidade. Consiste, inicialmente, em anular
o fato jornalístico -tumultos
em Brasília- para depois
apontar os perigos que o MST
representa à ordem democrática, só que fazendo "o governo"
apontar esse perigo; anula-o,
então. A revista se faz de mera
espectadora dos perigos, atribuindo-os ao "exagero" do governo, a suas preocupações e
pesadelos. Mas é espectadora a
partir do ponto de vista de generais preocupados e de uma
Brasília assaltada de pesadelos.
Nega-se, assim, a assumir até
mesmo o papel do cidadão de
bem assustado ao mesmo tempo com a fome e com a radicalização, o que é o papel de "Veja". Eis como a imparcialidade
se torna governismo na imprensa global.
Pois existem, creio eu, vários
modos de ser "neutro" e "imparcial". "Veja" é careta sob
muitos aspectos, familiar, porta-voz da classe média de barriga domingueira, mas atua
num registro de neutralidade
ideológica intensificado, como
a Folha. Assim: fulano diz isso,
beltrano diz aquilo, e esse entrechoque é dramático, agônico.
O governo está errado, o
MST está errado: eis um tipo
de imparcialidade. O MST está
certo, o governo está certo: eis
outro tipo de imparcialidade.
O MST é eficiente, mas o governo, que está certo, exagera
quando diz o que eu mesmo
quero dizer: eis a imparcialidade de "Época", que resulta
ser menos ideológica e menos
jornalística do que o próprio
governo. É um produto frouxo,
teme o policiamento que exerce sobre si mesmo.
Nunca pensei que fosse torcer
pela "Veja", essa média da
classe média, esse conformismo crítico de churrascaria rodízio insultado pelo fato de
que na churrascaria os impostos são altos e não há garçons
de "cor". Mas "Época" considera que a churrascaria é o lugar
da verdade, que cada churrasco é real e diz que a culpa é do
maître se ali os garçons são
brancos e as pessoas comem
demais. Isso é que é imparcialidade jornalística.
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