São Paulo, quarta, 27 de maio de 1998

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"Época" é a neutralidade da churrascaria

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

As Organizações Globo lançaram esta semana uma revista semanal para concorrer com "Veja" e "Isto É". Trata-se, como o leitor já está sabendo, de "Época". A propaganda foi intensa. A expectativa, pelo menos no meio jornalístico, era fremente, desnorteada e cabal -como, aliás, costumam ser as coisas no meio jornalístico.
Também é próprio dos jornalistas o vezo da precipitação. Talvez seja errado julgar a revista pelo seu primeiro número. O primeiro número de "Veja", disse-me um jornalista experiente, foi fraquíssimo. Tento avaliar "Época", então, abstendo-me de juízos de qualidade mais diretos.
O grande fato jornalístico da semana passada foi o tumulto em Brasília. Houve 20 feridos. Na televisão, vi Jair Meneguelli atuando de bombeiro. Enquanto o "pau comia", ACM estava recebendo em palácio a Rainha da Bergamota. Eduardo Suplicy teve a calça rasgada por um rottweiler da PM. A PM está sob comando do petista Cristóvam Buarque.
Que prato cheio para jornalistas! Quais foram os responsáveis pelo tumulto? Que tal fotos dos "baderneiros"? Como não entrevistar Meneguelli? Seria bom ver uma cena do encontro de ACM com a Rainha da Bergamota. E o que é bergamota? E qual o controle de Cristóvam Buarque sobre a polícia? E balas de borracha? Como são? Dóem? No setor de serviços: como criar um rottweiler? Qual o tecido da calça de Suplicy? Já imaginou se fosse importado da Indonésia? Por falar nisso, quais os deputados mais elegantes do Congresso?
Raciocino como editor de revista semanal: assuntos como os acima são típicos de revista. "Época", "Veja" e "Isto É" optaram por não dar os tumultos na capa. Há nisso uma decisão política, que não discuto. Melhor considerar tudo aquilo um episódio isolado do que empenhar-se na teoria de que o país está "à beira do caos".
Mas cabe uma análise mais detalhada de como "Época" tratou o episódio. Toda a batalha campal coube em "Isto É", apesar de não terem usado o assunto na capa, abriram textos e fotos bem grandes na seção de política.
Noto aqui um primeiro ponto relevante. Se as três revistas obedeceram a uma mesma decisão estratégica -não dar o tumulto na capa-, a revista das Organizações Globo tem como característica levar a decisão a suas últimas consequências. Foi quem mais exagerou, quem mais deixou explícita essa decisão.
O microtexto a respeito do tumulto era, em "Época", um "box" dentro de uma reportagem sobre o MST. Isso vale ser lido em detalhe. Como título, temos: "Uma organizada fábrica de conflitos". O subtítulo é: "Saques no sertão e tensão nos canaviais. Por trás disso há uma eficiente estrutura nacional".
Só essas frases dariam páginas de análise. Tento abreviar. Quando o adjetivo é anteposto ao substantivo -"uma organizada fábrica de conflitos", em vez de "uma fábrica de conflitos organizada"- há algo de elogioso, e não de denunciante, na frase. Esse efeito elogioso é logo abandonado: vem aí "saques no sertão" e, de forma mais neutra, "tensão" nos canaviais. O leitor fica esperando. "Por trás disso..." (o leitor espera, conspiratório, uma denúncia: a-há...!), mais um elogio: "há uma eficiente estrutura nacional".
Ou seja, o MST poderia aparecer num programa do Sebrae em favor da microempresa. Mas não sejamos tão otimistas. Ainda que dentro de um espírito positivo e otimista -o MST é o "Gente que Faz"-, é preciso alertar contra os perigos de suas iniciativas. Só que os perigos aparecem por interposta pessoa. Faço a leitura do primeiro parágrafo do texto.
"O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, dono da sigla MST" (eis aí o princípio da propriedade privada reafirmado) "tem provocado alguns pesadelos e muitas preocupações em Brasília."
No espírito da mais alta neutralidade, portanto, "Época" transfere a Brasília pesadelos e preocupações que deveriam ser as de todo cidadão, se o que está em jogo é a ordem vigente. Mas "Época" não quer ser "porta-voz de todo cidadão", por três motivos: isso a tornaria "parcial", isso é a função de "Veja", e isso é a função de Fernando Henrique.
De modo que a revista começa assumindo o ponto de vista do governo para narrar os tumultos, mas atribui esse ponto de vista não a si mesma, e sim "a Brasília". Tudo, para "Época", reduziu-se a "um tumulto de pequenas proporções" e "em poucas horas tudo estava sob controle". Mas os órgãos de segurança, diz a revista, "temem o pior".
Prossigo. O segundo parágrafo da matéria ouve o general Alberto Cardoso, secretário do ex-SNI. Ele apostava num arrefecimento dos saques. "Época" se mostra "independente" e "crítica" em sua reverente escuta dos órgãos de segurança. Corajosamente, diz que Cardoso "falhou". Há aqui o eco de "Veja errou", célebre bordão com que a revista da Abril respondia a qualquer carta reclamando de injustiças.
A "falha" de Cardoso põe lenha na fogueira e acentua o vigor jornalístico de "Época". Mas esse vigor jornalístico não pode durar muito, pois a imparcialidade é seu valor fundamental. Segue-se uma frase de Vicente Chelotti, diretor-geral da Polícia Federal, pregando a prisão dos líderes do MST. "Exagero", responde "Época". A imparcialidade, aqui, corresponde a neutralizar os acontecimentos.
Seguem-se mais elogios ao MST. O movimento "tem faro para perseguir os dramas e mazelas sociais do país. Explora-os como nenhum outro segmento político, e sua maior virtude talvez seja revelá-los". Eis o MST como uma espécie de imprensa que "Época" gostaria de ser. Só que não consegue.
"Muitas vezes -como pensa tanta gente dentro e fora do governo- seus militantes extrapolam e põem em risco a ordem estabelecida, que é democrática." O suposto alerta de "Época", atribuído a "tanta gente" que está "dentro e fora do governo" (penso novamente em Roberto Marinho), é repetido algumas linhas depois... pelo próprio governo: "O general Alberto Cardoso admite" (verbo imparcializador): "Eles são úteis quando ajudam a mostrar os problemas que temos... mas só que não podem ir contra as instituições".
Ou seja, a revista da Globo nada fez senão parafrasear o general numa aura de neutralidade e até de elogios ao MST. Curiosa imparcialidade. Consiste, inicialmente, em anular o fato jornalístico -tumultos em Brasília- para depois apontar os perigos que o MST representa à ordem democrática, só que fazendo "o governo" apontar esse perigo; anula-o, então. A revista se faz de mera espectadora dos perigos, atribuindo-os ao "exagero" do governo, a suas preocupações e pesadelos. Mas é espectadora a partir do ponto de vista de generais preocupados e de uma Brasília assaltada de pesadelos.
Nega-se, assim, a assumir até mesmo o papel do cidadão de bem assustado ao mesmo tempo com a fome e com a radicalização, o que é o papel de "Veja". Eis como a imparcialidade se torna governismo na imprensa global.
Pois existem, creio eu, vários modos de ser "neutro" e "imparcial". "Veja" é careta sob muitos aspectos, familiar, porta-voz da classe média de barriga domingueira, mas atua num registro de neutralidade ideológica intensificado, como a Folha. Assim: fulano diz isso, beltrano diz aquilo, e esse entrechoque é dramático, agônico.
O governo está errado, o MST está errado: eis um tipo de imparcialidade. O MST está certo, o governo está certo: eis outro tipo de imparcialidade. O MST é eficiente, mas o governo, que está certo, exagera quando diz o que eu mesmo quero dizer: eis a imparcialidade de "Época", que resulta ser menos ideológica e menos jornalística do que o próprio governo. É um produto frouxo, teme o policiamento que exerce sobre si mesmo.
Nunca pensei que fosse torcer pela "Veja", essa média da classe média, esse conformismo crítico de churrascaria rodízio insultado pelo fato de que na churrascaria os impostos são altos e não há garçons de "cor". Mas "Época" considera que a churrascaria é o lugar da verdade, que cada churrasco é real e diz que a culpa é do maître se ali os garçons são brancos e as pessoas comem demais. Isso é que é imparcialidade jornalística.



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