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NELSON ASCHER
Os tempos estão mudando
Um dos fatores que tornam
tão difícil abandonar o tabagismo é o ritmo desigual, mas
combinado, de seus "feedbacks"
conflitantes. O prazer que um cigarro dá (por exemplo, com o café
depois do almoço) é imediato. Já
os danos que o vício causa, do enfisema ao câncer, da hipertensão à
fadiga crônica, levam anos para se
revelar. Ademais, cada cigarro individual acarreta, se tanto, um
prejuízo microscópico: nunca é o
próximo que vai matar o fumante.
Para agravar a situação, quando alguém, com esforço sobre-humano, deixa de fumar, embora os
benefícios sejam substanciais,
sensíveis e rápidos, ele ou ela sucumbe àquilo que o ser humano
tem de mais traiçoeiro: a memória. Três meses após o supremo
heroísmo de ter jogado o derradeiro maço na lata de lixo, a capacidade de subir correndo dez
lances de escada se converte em
algo natural, como se tivesse sempre estado presente. A nostalgia
de uma tragada relaxante, porém, conforme tiramos os dedos
do teclado, apoiamos os cotovelos
nos braços da poltrona e acompanhamos a fumaça que se eleva devagar, esta não nos abandona jamais.
E o que vale para a nicotina,
aplica-se igualmente a qualquer
outra droga: álcool e farinha de
trigo, cocaína e açúcar: um docinho não engorda nem é mais uma
biritinha, uma só, que fará a cabeça explodir amanhã. Infelizmente, é assim que nosso hard
drive funciona. Se os sintomas desagradáveis da catapora ou da caxumba podem ter sido sepultados
há décadas, persiste eternamente
a recordação neo-proustiana dos
dias sem aula, da televisão ligada
o dia inteiro, da mãe servindo o
almoço na cama.
Fazer extrapolações automáticas do indivíduo para povos, nações ou para a espécie é uma operação acompanhada de inúmeras
contra-indicações, todas elas razoáveis e justas. Expressões como
"psicologia das massas" andam,
por ótimos motivos, desacreditadas... Não que seja impossível
identificar traços diferenciais no
comportamento de grupos distintos: em circunstâncias semelhantes, franceses e ingleses, brasileiros
e argentinos, católicos e budistas,
adolescentes e idosos, homens e
mulheres etc. tendem a agir ou
reagir, não raro, de modo diferente. Sucede que, uma vez constatado tal ou qual padrão de comportamento coletivo, uma constatação hipotética e generalizante, cede-se facilmente à tentação de, revertendo-a, usá-la para explicar
ou, pior, definir e estigmatizar indivíduos. E é aí que mora o perigo.
Registradas tais ressalvas, não é
demasiado temerário afirmar que
culturas e civilizações também
caem nas armadilhas da memória, se bem que essas variem de lugar para lugar, de época para época. Um mito quase constante, porém, é o do passado róseo ou dourado. Os dias de ontem, como se
sabe, foram melhores, quando
quem os lembra era jovem e saudável, vigoravam a lei e a ordem,
as coisas custavam menos, respeitava-se a autoridade ou não se
oprimia o proletariado, os filmes,
livros e discos tinham um nível
muito superior, os políticos eram
honestos ou roubavam menos,
não havia lixo nas ruas, fila diante do caixa no supermercado nem
espera nos restaurantes.
Ao contrário, contudo, do que se
crê, qualquer estudo sério demonstra que, malgrado epidemias e guerras, terrorismo e criminalidade, desemprego e bastante miséria, catástrofes naturais
e regimes cruéis, é agora que a humanidade se encontra, comparativamente, em sua Idade de Ouro.
Nunca antes o planeta alimentou
nem medicou tão bem uma parcela tão grande da maior população que já existiu. Até um latino-americano atual deve, em princípio, viver mais do que, cem anos
atrás, um americano ou europeu
ocidental. E viverá mais saudável
e confortavelmente. Suas chances
de morrer subitamente numa epidemia (demorou 400 anos para se
achar a cura da sífilis e em 15 anos
se descobriu o tratamento eficaz
para a Aids) ou violentamente
(assassinado, no front ou sob tortura) são menores do que foram
durante quase toda a história. E a
maioria das pessoas tem igualmente maior controle sobre o próprio destino, se beneficia de mais
autonomia individual e liberdade
política, do que, digamos, no século 19.
Mesmo assim, um amigo observou cético que o prolongamento
indiscutível da expectativa de vida não valia nada, pois se reduzia
apenas a uma extensão da velhice. Talvez ele estivesse se entregando ao espírito pessimista de
nossos tempos. Afinal, a balzaquiana contemporânea está na
casa dos 50, freqüenta a academia
e namora um surfista. Este é um
adolescente de 30 e poucos anos
que ainda não escolheu sua profissão, "está dando um tempo" e
mora com os pais, gente de 80
que, se pertence à classe média,
dirige carros e faz turismo mundo
afora.
Se algo define o estado atual de
nossa civilização, é um pessimismo injustificado. Pergunte-se a
um cidadão comum o que pensa e
ele responderá o exato oposto do
que dizia o dr. Pangloss, o personagem otimista do "Cândido" de
Voltaire, ou seja, que habitamos o
pior dos mundos possíveis. De onde vem tamanho descompasso
entre a realidade e sua percepção?
Primeiro, por mais prolongado
que seja o processo, indivíduos
envelhecem, morrem e amiúde
traduzem o mundo ao redor em
termos da própria degenerescência física. Se isso não é exatamente novo, acrescenta-se hoje em
dia, a essa sensação inevitável,
um crescimento exponencial das
expectativas em geral e, portanto,
das exigências. Se a democracia
industrial moderna oferece a seus
membros uma vida melhor do
que as civilizações rivais, ela promete ainda mais do que oferece.
Enquanto o progresso material
obedece a condições objetivas, a
imaginação não tem limites e o
confronto entre ambos gera uma
frustração irresolúvel.
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