São Paulo, segunda-feira, 27 de junho de 2005

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NELSON ASCHER

Os tempos estão mudando

Um dos fatores que tornam tão difícil abandonar o tabagismo é o ritmo desigual, mas combinado, de seus "feedbacks" conflitantes. O prazer que um cigarro dá (por exemplo, com o café depois do almoço) é imediato. Já os danos que o vício causa, do enfisema ao câncer, da hipertensão à fadiga crônica, levam anos para se revelar. Ademais, cada cigarro individual acarreta, se tanto, um prejuízo microscópico: nunca é o próximo que vai matar o fumante.
Para agravar a situação, quando alguém, com esforço sobre-humano, deixa de fumar, embora os benefícios sejam substanciais, sensíveis e rápidos, ele ou ela sucumbe àquilo que o ser humano tem de mais traiçoeiro: a memória. Três meses após o supremo heroísmo de ter jogado o derradeiro maço na lata de lixo, a capacidade de subir correndo dez lances de escada se converte em algo natural, como se tivesse sempre estado presente. A nostalgia de uma tragada relaxante, porém, conforme tiramos os dedos do teclado, apoiamos os cotovelos nos braços da poltrona e acompanhamos a fumaça que se eleva devagar, esta não nos abandona jamais.
E o que vale para a nicotina, aplica-se igualmente a qualquer outra droga: álcool e farinha de trigo, cocaína e açúcar: um docinho não engorda nem é mais uma biritinha, uma só, que fará a cabeça explodir amanhã. Infelizmente, é assim que nosso hard drive funciona. Se os sintomas desagradáveis da catapora ou da caxumba podem ter sido sepultados há décadas, persiste eternamente a recordação neo-proustiana dos dias sem aula, da televisão ligada o dia inteiro, da mãe servindo o almoço na cama.
Fazer extrapolações automáticas do indivíduo para povos, nações ou para a espécie é uma operação acompanhada de inúmeras contra-indicações, todas elas razoáveis e justas. Expressões como "psicologia das massas" andam, por ótimos motivos, desacreditadas... Não que seja impossível identificar traços diferenciais no comportamento de grupos distintos: em circunstâncias semelhantes, franceses e ingleses, brasileiros e argentinos, católicos e budistas, adolescentes e idosos, homens e mulheres etc. tendem a agir ou reagir, não raro, de modo diferente. Sucede que, uma vez constatado tal ou qual padrão de comportamento coletivo, uma constatação hipotética e generalizante, cede-se facilmente à tentação de, revertendo-a, usá-la para explicar ou, pior, definir e estigmatizar indivíduos. E é aí que mora o perigo.
Registradas tais ressalvas, não é demasiado temerário afirmar que culturas e civilizações também caem nas armadilhas da memória, se bem que essas variem de lugar para lugar, de época para época. Um mito quase constante, porém, é o do passado róseo ou dourado. Os dias de ontem, como se sabe, foram melhores, quando quem os lembra era jovem e saudável, vigoravam a lei e a ordem, as coisas custavam menos, respeitava-se a autoridade ou não se oprimia o proletariado, os filmes, livros e discos tinham um nível muito superior, os políticos eram honestos ou roubavam menos, não havia lixo nas ruas, fila diante do caixa no supermercado nem espera nos restaurantes.
Ao contrário, contudo, do que se crê, qualquer estudo sério demonstra que, malgrado epidemias e guerras, terrorismo e criminalidade, desemprego e bastante miséria, catástrofes naturais e regimes cruéis, é agora que a humanidade se encontra, comparativamente, em sua Idade de Ouro. Nunca antes o planeta alimentou nem medicou tão bem uma parcela tão grande da maior população que já existiu. Até um latino-americano atual deve, em princípio, viver mais do que, cem anos atrás, um americano ou europeu ocidental. E viverá mais saudável e confortavelmente. Suas chances de morrer subitamente numa epidemia (demorou 400 anos para se achar a cura da sífilis e em 15 anos se descobriu o tratamento eficaz para a Aids) ou violentamente (assassinado, no front ou sob tortura) são menores do que foram durante quase toda a história. E a maioria das pessoas tem igualmente maior controle sobre o próprio destino, se beneficia de mais autonomia individual e liberdade política, do que, digamos, no século 19.
Mesmo assim, um amigo observou cético que o prolongamento indiscutível da expectativa de vida não valia nada, pois se reduzia apenas a uma extensão da velhice. Talvez ele estivesse se entregando ao espírito pessimista de nossos tempos. Afinal, a balzaquiana contemporânea está na casa dos 50, freqüenta a academia e namora um surfista. Este é um adolescente de 30 e poucos anos que ainda não escolheu sua profissão, "está dando um tempo" e mora com os pais, gente de 80 que, se pertence à classe média, dirige carros e faz turismo mundo afora.
Se algo define o estado atual de nossa civilização, é um pessimismo injustificado. Pergunte-se a um cidadão comum o que pensa e ele responderá o exato oposto do que dizia o dr. Pangloss, o personagem otimista do "Cândido" de Voltaire, ou seja, que habitamos o pior dos mundos possíveis. De onde vem tamanho descompasso entre a realidade e sua percepção?
Primeiro, por mais prolongado que seja o processo, indivíduos envelhecem, morrem e amiúde traduzem o mundo ao redor em termos da própria degenerescência física. Se isso não é exatamente novo, acrescenta-se hoje em dia, a essa sensação inevitável, um crescimento exponencial das expectativas em geral e, portanto, das exigências. Se a democracia industrial moderna oferece a seus membros uma vida melhor do que as civilizações rivais, ela promete ainda mais do que oferece. Enquanto o progresso material obedece a condições objetivas, a imaginação não tem limites e o confronto entre ambos gera uma frustração irresolúvel.

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