São Paulo, sábado, 27 de junho de 1998

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Banks oferece literatura bela e amarga

CÁSSIO STARLING CARLOS
Editor-adjunto de Especiais


Com um empurrão do cinema, finalmente o leitor brasileiro vai poder entrar na obra de Russell Banks, um dos mais empolgantes escritores americanos contemporâneos. Adaptado para o cinema pelo canadense Atom Egoyan e exibido há poucos meses no país, "O Doce Amanhã" é um veículo exato para o leitor ser capturado pela beleza e a amargura da literatura de Banks.
No romance, publicado originalmente em 91, Banks retrata uma comunidade desolada no interior do Estado de Nova York, assolada pelas nevascas e pela tragédia. Um acidente com um ônibus escolar, carinhosamente conduzido por uma senhora, mata 14 crianças e deixa a cidade atônita.
Atraídos pelo cheiro das mortes, não demoram a chegar à cidade advogados para oferecer aos pais das vítimas preciosas indenizações. No confronto entre a perda e a possibilidade de reparação material, Banks explora todos os contornos que prefere enxergar nas sombras da natureza humana.
Seu romance é antes de tudo moral. Trata-se de ironizar a América, com sua obsessão por reparar, origem de uma milionária indústria da indenização. O argumento acaba sendo: "Já que a ferida está aberta, por que não extrair um pouco mais de sangue?"
Em contraponto a essa justiça institucionalizada, que não se limita a distribuir a culpa, mas que pretende capitalizá-la até onde for possível, está uma outra, mais um sentimento que uma instituição.
É a partir dela que Banks elabora a narrativa e, por consequência, a emoção que atravessa seu romance. Quatro vozes, quatro diferentes pontos de vista e experiências do acidente compõem o romance, na forma de capítulos.
São eles Dolores, a motorista -protagonista do acidente-, Billy, pai de duas crianças mortas no desastre -testemunha ocular-, e Nichole, adolescente que sobrevive, mas fica paralítica -e cuja dor, acentuada pelo drama do abuso sexual, compõe as páginas mais melancólicas do romance.
Um último ponto de vista, externo, é do advogado, Stephens, cujo objetivo é construir a versão "lucrativa" dos fatos. "Acidentes não existem. Sequer conheço o significado da palavra e nunca confio em quem diz conhecer", declara a certa altura.
Aos moradores depauperados da cidade, porém, não parece má a alternativa de inventar um culpado, desde que se possa fazer disso uma valiosa fonte de renda. A grande ironia da justiça convertida num modo de escapar da falência é um dos tópicos da virulência moral de Banks no romance.
Menos irônica e mais trágica, porém, é a visão que o autor dá do abandono da infância. O próprio advogado é uma vítima disso, com sua filha drogada que pede sua atenção pelo telefone.
O absurdo das mortes no ônibus escolar, o "paradoxo radical", "a negação das relações de causa e efeito" que significa os pais verem seus filhos morrer antes deles funciona como parábola desse avesso da perda, o abandono, prefiguração da morte.
"O Doce Amanhã" é sobre essa espécie de lei da existência, que obriga todos -adultos e crianças- à solidão, a estar entregues à própria sorte.


Livro: O Doce Amanhã
Autor: Russell Banks
Lançamento: Record
Quanto: R$ 19 (236 págs.)



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