São Paulo, segunda, 27 de julho de 1998

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Quantos dias faltam para descobrir Umseteumlândia

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Umseteumlândia é o nome de um lugar imaginário, criado por duas amigas de bom humor. Foi a única maneira de representar o espaço político eleitoral com que acabam de entrar em contato. Faulkner não criou o condado de Yoknapatawpha para melhor representar as histórias do sul dos Estados Unidos?
Elas não chegaram a essa palavra acidentalmente. Para começar, trabalham comigo na rua, em longas horas de panfletagem. E já ouviram centenas de vezes, quando montamos a barraca e as pessoas percebem sinais de políticos em campanha: já vêm os 171.
A principal reação é diante da promessas políticas não cumpridas. Quando Fernando Henrique abriu os cinco dedos, talvez soubesse que não poderia cumprir todas as propostas nas cinco áreas diferentes. Mas agiu como todos quase agem, prometendo mais do que realmente pode cumprir.
Um trabalho importante na rua é mostrar que dificilmente os políticos podem honrar suas promessas, simplesmente porque administram escassez e não têm coragem de admitir isso. No entanto é preciso mostrar também que a maioria das pessoas não se lembra em quem votou nem tem acesso ao programa escrito dos candidatos.
A impressão que se tem é a de que só os políticos prometem sem cumprir. Minhas amigas concluíram que a Umseteumlândia é um espaço muito mais vasto, no qual os candidatos são apenas alguns dos personagens principais.
Como quase todo mundo acha que os políticos mentem, sente-se no direito de mentir para eles também. Além das promessas não cumpridas dos políticos, há uma montanha de promessas jamais reveladas de pessoas e grupos que se dispõem a ajudar candidatos.
Foi aí que intuímos que Umseteumlândia é um mundo informal e ativo, que mobiliza milhões, apóia alguns candidatos, engana outros e precisa de um exame bem mais profundo do que realizamos até agora.
Neste ano, tivemos alguns grandes escândalos: falsificação de materiais de construção (Sérgio Naya e seus edifícios) e falsificação de remédios. Além disso, vimos no Rio como alguns laboratórios não distinguem urina de guaraná.
Recentemente havia um quadro no "Fantástico", em que técnicos do Inmetro examinavam produtos do dia a dia. Será que as caixas de fósforo têm tanto palito quanto anunciam, a água mineral é mesmo pura, o que é que vem misturado no pó de café?
Claro que os políticos merecem críticas, pois são em parte responsáveis por tudo isso. Nesses primeiros contatos de rua é necessário mostrar que a Umseteumlândia é um território muito complexo, que cobra um pequeno imposto de cada um de nós e estende seus territórios para além do horizonte político.
O mais difícil de todo o processo é articular essa crise conjuntural com a crise mais profunda da política, que perde importância para a religião, para a economia, para o direito e a arte. Georgio Agambem, no livro "Meios sem Fins" (Bibliothéque Rivages), faz uma análise profunda do desgaste da política, examinando algumas categorias como povo, direitos humanos etc.
Ele não tem intenção de oferecer caminhos. Mas mostra muito bem como é ambíguo o conceito de povo e aponta para o refugiado como o símbolo de nossa época, em que as nações perdem importância, uma vez que o termo nasceu também de nativos, e hoje milhões de pessoas vivem onde nasceram, despojadas de sua cidadania.
É interessante ler esse texto, tratando tão rigorosamente do conceito povo, e sair para trabalhar na Umseteumlândia. Logo no aterro do Flamengo, um candidato que chamarei de Nicolau colocou uma imensa faixa escrita assim: "O povo precisa de Nicolau".
Já distribuí centenas de panfletos depois da Copa. Nunca vi tantos sorrisos, como este que vem aos meus lábios, quando vejo que o povo precisa de Nicolau. Navegamos num oceano de epítetos: o defensor dos humildes, esse você conhece, uma vida dedicada à saúde. Ninguém o leva muito a sério.
O pior é que o estudo de Agambem mostra que o mesmo conceito de povo não é levado muito a sério. Segundo ele, Lincoln já expressava essa ambiguidade quando invocou um governo eleito do povo, pelo povo e para o povo. Agambem observa que só aí já são dois povos, pois a repetição pressupõe dois povos, um se opondo ao outro. Da minha parte ouso dizer: no mínimo dois povos, pois na Constituição americana figuram as três repetições .
Na rua, o povo desconfia dos políticos. Nos estúdios de produção, pesquisadores desconfiam do povo e submetem-na a uma rigorosa pesquisa de todas as suas opiniões. Elas são devolvidas em forma de proposta: vamos lavar as calçadas das lojas com creolina, assim espantaremos os mendigos; vamos explodir o shopping e mandar para os ares as duas sapatas de "Torre de Babel".
Tanto o povo como Nicolau precisam chegar a um acordo nessa campanha. Existe alguma possibilidade de revigorar a política, na qual vamos marchar para um show de nível duvidoso, verdadeira atração na sociedade de espetáculos Umseteumlândia.
Não tenho uma visão pessimista. Tenho apenas uma dificuldade para me mover nesse quadro. A maioria com sua força política impõe uma política de drogas, baseada no proibicionismo. É legítimo, nada se pode fazer exceto dialogar ao longo dos anos.
Mas agora a maioria resolveu nos privar de um importante direito: o de ver o fim das histórias a partir do coração dos seus autores. A maioria decide em democracia direta que os finais serão sempre felizes, que o bem sempre triunfará sobre o mal, que os amantes sempre se reencontrarão. Um mundo assim cor-de-rosa contém a própria essência estética da Umseteumlândia .
Tento apenas imaginar como serão as coisas quando começarem os programas eleitorais. Nesse espaço, os dois Brasis, o da novela das oito, o da novela política, se reencontram. E vamos ver quem é esse Nicolau, quem é esse povo.



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