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Quantos dias faltam para descobrir Umseteumlândia
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Umseteumlândia é o nome
de um lugar imaginário, criado por duas amigas de bom
humor. Foi a única maneira de
representar o espaço político
eleitoral com que acabam de
entrar em contato. Faulkner
não criou o condado de Yoknapatawpha para melhor representar as histórias do sul
dos Estados Unidos?
Elas não chegaram a essa palavra acidentalmente. Para começar, trabalham comigo na
rua, em longas horas de panfletagem. E já ouviram centenas de vezes, quando montamos a barraca e as pessoas percebem sinais de políticos em
campanha: já vêm os 171.
A principal reação é diante
da promessas políticas não
cumpridas. Quando Fernando
Henrique abriu os cinco dedos,
talvez soubesse que não poderia cumprir todas as propostas
nas cinco áreas diferentes. Mas
agiu como todos quase agem,
prometendo mais do que realmente pode cumprir.
Um trabalho importante na
rua é mostrar que dificilmente
os políticos podem honrar suas
promessas, simplesmente porque administram escassez e
não têm coragem de admitir
isso. No entanto é preciso mostrar também que a maioria
das pessoas não se lembra em
quem votou nem tem acesso ao
programa escrito dos candidatos.
A impressão que se tem é a de
que só os políticos prometem
sem cumprir. Minhas amigas
concluíram que a Umseteumlândia é um espaço muito mais
vasto, no qual os candidatos
são apenas alguns dos personagens principais.
Como quase todo mundo
acha que os políticos mentem,
sente-se no direito de mentir
para eles também. Além das
promessas não cumpridas dos
políticos, há uma montanha
de promessas jamais reveladas
de pessoas e grupos que se dispõem a ajudar candidatos.
Foi aí que intuímos que Umseteumlândia é um mundo informal e ativo, que mobiliza
milhões, apóia alguns candidatos, engana outros e precisa
de um exame bem mais profundo do que realizamos até
agora.
Neste ano, tivemos alguns
grandes escândalos: falsificação de materiais de construção
(Sérgio Naya e seus edifícios) e
falsificação de remédios. Além
disso, vimos no Rio como alguns laboratórios não distinguem urina de guaraná.
Recentemente havia um quadro no "Fantástico", em que
técnicos do Inmetro examinavam produtos do dia a dia. Será que as caixas de fósforo têm
tanto palito quanto anunciam,
a água mineral é mesmo pura,
o que é que vem misturado no
pó de café?
Claro que os políticos merecem críticas, pois são em parte
responsáveis por tudo isso.
Nesses primeiros contatos de
rua é necessário mostrar que a
Umseteumlândia é um território muito complexo, que cobra
um pequeno imposto de cada
um de nós e estende seus territórios para além do horizonte
político.
O mais difícil de todo o processo é articular essa crise conjuntural com a crise mais profunda da política, que perde
importância para a religião,
para a economia, para o direito e a arte. Georgio Agambem,
no livro "Meios sem Fins" (Bibliothéque Rivages), faz uma
análise profunda do desgaste
da política, examinando algumas categorias como povo, direitos humanos etc.
Ele não tem intenção de oferecer caminhos. Mas mostra
muito bem como é ambíguo o
conceito de povo e aponta para
o refugiado como o símbolo de
nossa época, em que as nações
perdem importância, uma vez
que o termo nasceu também de
nativos, e hoje milhões de pessoas vivem onde nasceram,
despojadas de sua cidadania.
É interessante ler esse texto,
tratando tão rigorosamente do
conceito povo, e sair para trabalhar na Umseteumlândia.
Logo no aterro do Flamengo,
um candidato que chamarei
de Nicolau colocou uma imensa faixa escrita assim: "O povo
precisa de Nicolau".
Já distribuí centenas de panfletos depois da Copa. Nunca
vi tantos sorrisos, como este
que vem aos meus lábios,
quando vejo que o povo precisa de Nicolau. Navegamos
num oceano de epítetos: o defensor dos humildes, esse você
conhece, uma vida dedicada à
saúde. Ninguém o leva muito a
sério.
O pior é que o estudo de
Agambem mostra que o mesmo conceito de povo não é levado muito a sério. Segundo
ele, Lincoln já expressava essa
ambiguidade quando invocou
um governo eleito do povo, pelo povo e para o povo. Agambem observa que só aí já são
dois povos, pois a repetição
pressupõe dois povos, um se
opondo ao outro. Da minha
parte ouso dizer: no mínimo
dois povos, pois na Constituição americana figuram as três
repetições .
Na rua, o povo desconfia dos
políticos. Nos estúdios de produção, pesquisadores desconfiam do povo e submetem-na a
uma rigorosa pesquisa de todas as suas opiniões. Elas são
devolvidas em forma de proposta: vamos lavar as calçadas
das lojas com creolina, assim
espantaremos os mendigos; vamos explodir o shopping e
mandar para os ares as duas
sapatas de "Torre de Babel".
Tanto o povo como Nicolau
precisam chegar a um acordo
nessa campanha. Existe alguma possibilidade de revigorar
a política, na qual vamos marchar para um show de nível
duvidoso, verdadeira atração
na sociedade de espetáculos
Umseteumlândia.
Não tenho uma visão pessimista. Tenho apenas uma dificuldade para me mover nesse
quadro. A maioria com sua
força política impõe uma política de drogas, baseada no
proibicionismo. É legítimo, nada se pode fazer exceto dialogar ao longo dos anos.
Mas agora a maioria resolveu nos privar de um importante direito: o de ver o fim das
histórias a partir do coração
dos seus autores. A maioria decide em democracia direta que
os finais serão sempre felizes,
que o bem sempre triunfará sobre o mal, que os amantes sempre se reencontrarão. Um
mundo assim cor-de-rosa contém a própria essência estética
da Umseteumlândia .
Tento apenas imaginar como
serão as coisas quando começarem os programas eleitorais.
Nesse espaço, os dois Brasis, o
da novela das oito, o da novela
política, se reencontram. E vamos ver quem é esse Nicolau,
quem é esse povo.
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