São Paulo, segunda-feira, 27 de agosto de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Para curador, mostra será "coruscante"

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

O paulistano Olney Krüse sempre se sentiu "como um sundae de chocolate no asfalto do meio-dia". "Sou derretidíssimo." Chora à toa, tem "controle emocional zero" e adora superlativos. Tudo lhe parece "íssimo" ou "érrimo" -o lugar é iluminadíssimo, o fulano é bacanérrimo, o acontecimento é tristíssimo. "Trago uma drag queen dentro de mim", define, saboreando a rima bilíngue.
Na quarta-feira, às 19h, quando o Masp Centro abrir a mostra "Viva o Kitsch", os excessos de Krüse irão experimentar uma espécie de sagração. Cabelos e barba "prateados à Ray Coniff", o jornalista de 62 anos -curador da exposição em parceria com Eunice Moraes- espera uma noite cintilante, esfuziante, translumbrante. "Coruscante", resume.
Krüse conhece cada uma das cerca de 2.000 peças que o museu exibirá. Foi ele próprio quem as acumulou durante quase quatro décadas. Voraz, não podia ver uma bailarina de louça, um gato de porcelana ou uma almofada de oncinha que arrumava jeito de levá-los para casa.
De início, não se preocupava com teorizações. Apenas recolhia as bugigangas -objetos de uso cotidiano ou decorativo que, em determinados círculos sociais, carregam a pecha de cafonas.
Movia-o "um fascínio irresistível por qualquer coisa que brilhasse". Só depois descobriu a palavra "kitsch". Descobriu-a sem, no entanto, entender o que significava. "Certa vez, não me recordo onde, avistei aquelas letrinhas maravilhosas: ki-tsch. Pensei: "Que nome lindo! Parece marca de perfume"."
O tempo passou, e Krüse acabou compreendendo que o conceito atribuía valor artístico à inigualável coleção de badulaques que estava reunindo. Tornou-se crítico de arte e o maior especialista brasileiro em kitsch.
Agora, doou tudo para o Masp. "Ainda não assimilei a perda. Quando cair em mim, vou encher um copo de champanhe, botar um disco de tango no aparelho de som e chorar muito."
De formação rigidamente católica, Krüse conta que, por volta dos 13 anos, fez "um pacto com Deus". Vivia em um ambiente familiar opressor -pai "alcoólatra, agressivo, devasso e tosco"; mãe "refinada, puritana e autoritária". "Pedi, então, que os céus me dessem a graça de, um dia, realizar algo retumbante, que surpreendesse as pessoas ditas normais e que me afastasse daquela origem árida." Hoje sabe que encontrou no kitsch o refúgio tão procurado. "É a minha bengala."
Em 1965, adquiriu a primeira peça da coleção: um display da Gessy Lever com a foto de Ieda Maria Vargas, a gaúcha que ganhara o título de miss Universo dois anos antes. Risonha, de coroa na cabeça, ela segurava uma embalagem de creme dental.
Os milhares de objetos que se seguiram, Krüse garimpou dentro e fora do Brasil -Nova York, Hollywood, Tóquio, Paris, Leste Europeu. "O kitsch não tem limites geográficos nem de classe. Ninguém lhe escapa."
Até doar o acervo, guardava-o em Atibaia (SP), num hotel desativado, de 33 aposentos, que divide com o artista plástico Waldenir Reggiani. "Moramos apenas os dois ali, como se habitássemos um filme antigo de Walt Disney -"Cinderela", "Branca de Neve", "Bambi", por que não?"
Há poucos dias, passando diante de uma vitrine no bairro oriental da Liberdade, Krüse detectou "um magnífico" bife de plástico, grelhado, com borda gordurosa. "Urrei de felicidade." Comprou-o por R$ 58 e pretende incluí-lo na exposição. Enquanto não inaugura a mostra, porém, deixa-o perto da cama. "Amo espiá-lo quando acordo. É kitschérrimo."



Texto Anterior: O triunfo dos pinguins de geladeira
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.