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CINEMA/RÉPLICA
Didática de uma crítica preconceituosa
ANDRÉ KLOTZEL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ao me deparar, na Folha de
sexta-feira, 17 de agosto, com
a cobertura do filme por mim dirigido, "Memórias Póstumas",
acompanhada da crítica intitulada "Intenção didática reduz contundência da obra" (com conteúdo correspondente), de José Geraldo Couto, não pude resistir ao
impulso, normalmente contido,
de me manifestar.
Levar "Memórias Póstumas de
Brás Cubas" para o cinema é, per
si, uma provocação. É claro que a
transposição de um romance tão
lido e amado causaria sensações
tantas e tão variadas como quaisquer outras percepções de vida. E,
à semelhança de um pintor que
põe seu cavalete diante de uma
paisagem, o adaptador cinematográfico de uma obra literária escolhe o que utilizar do material disponível e como fazê-lo.
A fidelidade figurativa pode ser
maior ou menor na tela em relação ao panorama original, mas isso não implica graus diferentes de
criatividade. Uma pintura surrealista não é por definição mais criativa do que uma hiper-realista. A
tela será sempre uma interpretação.
Assim, despreocupado com
grau de "figurativismo" ou não de
minha versão cinematográfica do
livro -até porque Júlio Bressane
já me dera de presente a possibilidade de tomar todas as liberdades
com a obra original ao quebrar
lindamente o "protocolo" do cerimonial machadiano em seu "Brás
Cubas"- e ciente do caráter pessoal inevitável que o filme teria
pela própria individualidade perceptiva de cada leitor e espectador, senti-me à vontade para lidar
com o ícone da literatura.
É inegável que eu não desconhecia o potencial institucional da
obra original e que isso me deu
possibilidade de pensar um filme
ao custo de R$ 4,5 milhões, condigno com as necessidades ficcionais demandadas pelo romance.
E isso sem concessões, ou seja, a
idéia viável servia para dar a liberdade criativa necessária.
Colocadas essas premissas, cuja
autenticidade acredito que o espectador poderá reconhecer ao
assistir ao filme, sinto-me à vontade para mandar catar coquinho
aqueles que acusam, em "Memórias Póstumas", a "intenção didática" como sendo "o que mais salta aos olhos" e juntam, como
complemento a isso, o fato de que
o filme está sendo, como tantos
outros o são, utilizado por um
projeto de exibidores (conhecido
como Projeto Escola). Essas afirmativas, que acabam por embutir
uma diminuição tanto do filme
como do Projeto Escola, são preconceituosas e retrógradas.
Vamos começar pelo mais simples: o matemático. Os projetos
para levar estudantes ao cinema
têm sido responsáveis, em casos
muito bem-sucedidos, por não
mais que 200 mil espectadores.
Um filme é um verdadeiro sucesso de bilheteria quando atinge
mais que 1 milhão de espectadores, portanto nenhum produtor
pode pretender fazer um sucesso
como "A Partilha" ou Xuxa com
um projeto-escola.
Os projetos-escola (existem várias iniciativas) atendem a uma
necessidade -que muitos apregoaram e têm apregoado- que é
a formação de novos públicos.
Remando na contramaré do
bombardeio de produtos dos
grandes veículos de comunicação, promovem produtos culturais mais alternativos ou mesmo
recontextualizam produtos culturais do grande mercado.
A maneira com que se usa a palavra "didático" para qualificar a
obra cinematográfica supostamente menor revela preconceito.
A escola só seria merecedora de
obras mais, digamos, limitadas.
Desdobrando essa lógica, chega-se ao paroxismo da elite subdesenvolvida e brascubiana e exclama-se: "Simplifica a vida! E aí tens
um bom suporte para transmitir a
realidade, um pouco açucarada
-é verdade-, mas o suficiente
para a ignara juventude".
Como realizador de cinema exposto à avaliação pública de meu
trabalho, é evidente que aceito
críticas (ou pelo menos aqui estou
proclamando isso), mas isso não
significa sempre concordar com
elas. Sinto-me tranquilo para refutar visões grotescas e apressadas, que confundem sutileza com
conciliação, que pensam que simplicidade é transposição mecânica e reducionista e que acham que
o didático é o formalmente instrutivo, portanto limitado. Didática é a vida, crianças!
André Klotzel é cineasta e diretor de
"Memórias Póstumas"
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