São Paulo, segunda-feira, 27 de agosto de 2001

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CINEMA/RÉPLICA
Didática de uma crítica preconceituosa

ANDRÉ KLOTZEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao me deparar, na Folha de sexta-feira, 17 de agosto, com a cobertura do filme por mim dirigido, "Memórias Póstumas", acompanhada da crítica intitulada "Intenção didática reduz contundência da obra" (com conteúdo correspondente), de José Geraldo Couto, não pude resistir ao impulso, normalmente contido, de me manifestar.
Levar "Memórias Póstumas de Brás Cubas" para o cinema é, per si, uma provocação. É claro que a transposição de um romance tão lido e amado causaria sensações tantas e tão variadas como quaisquer outras percepções de vida. E, à semelhança de um pintor que põe seu cavalete diante de uma paisagem, o adaptador cinematográfico de uma obra literária escolhe o que utilizar do material disponível e como fazê-lo.
A fidelidade figurativa pode ser maior ou menor na tela em relação ao panorama original, mas isso não implica graus diferentes de criatividade. Uma pintura surrealista não é por definição mais criativa do que uma hiper-realista. A tela será sempre uma interpretação.
Assim, despreocupado com grau de "figurativismo" ou não de minha versão cinematográfica do livro -até porque Júlio Bressane já me dera de presente a possibilidade de tomar todas as liberdades com a obra original ao quebrar lindamente o "protocolo" do cerimonial machadiano em seu "Brás Cubas"- e ciente do caráter pessoal inevitável que o filme teria pela própria individualidade perceptiva de cada leitor e espectador, senti-me à vontade para lidar com o ícone da literatura.
É inegável que eu não desconhecia o potencial institucional da obra original e que isso me deu possibilidade de pensar um filme ao custo de R$ 4,5 milhões, condigno com as necessidades ficcionais demandadas pelo romance. E isso sem concessões, ou seja, a idéia viável servia para dar a liberdade criativa necessária.
Colocadas essas premissas, cuja autenticidade acredito que o espectador poderá reconhecer ao assistir ao filme, sinto-me à vontade para mandar catar coquinho aqueles que acusam, em "Memórias Póstumas", a "intenção didática" como sendo "o que mais salta aos olhos" e juntam, como complemento a isso, o fato de que o filme está sendo, como tantos outros o são, utilizado por um projeto de exibidores (conhecido como Projeto Escola). Essas afirmativas, que acabam por embutir uma diminuição tanto do filme como do Projeto Escola, são preconceituosas e retrógradas.
Vamos começar pelo mais simples: o matemático. Os projetos para levar estudantes ao cinema têm sido responsáveis, em casos muito bem-sucedidos, por não mais que 200 mil espectadores. Um filme é um verdadeiro sucesso de bilheteria quando atinge mais que 1 milhão de espectadores, portanto nenhum produtor pode pretender fazer um sucesso como "A Partilha" ou Xuxa com um projeto-escola.
Os projetos-escola (existem várias iniciativas) atendem a uma necessidade -que muitos apregoaram e têm apregoado- que é a formação de novos públicos. Remando na contramaré do bombardeio de produtos dos grandes veículos de comunicação, promovem produtos culturais mais alternativos ou mesmo recontextualizam produtos culturais do grande mercado.
A maneira com que se usa a palavra "didático" para qualificar a obra cinematográfica supostamente menor revela preconceito. A escola só seria merecedora de obras mais, digamos, limitadas. Desdobrando essa lógica, chega-se ao paroxismo da elite subdesenvolvida e brascubiana e exclama-se: "Simplifica a vida! E aí tens um bom suporte para transmitir a realidade, um pouco açucarada -é verdade-, mas o suficiente para a ignara juventude".
Como realizador de cinema exposto à avaliação pública de meu trabalho, é evidente que aceito críticas (ou pelo menos aqui estou proclamando isso), mas isso não significa sempre concordar com elas. Sinto-me tranquilo para refutar visões grotescas e apressadas, que confundem sutileza com conciliação, que pensam que simplicidade é transposição mecânica e reducionista e que acham que o didático é o formalmente instrutivo, portanto limitado. Didática é a vida, crianças!


André Klotzel é cineasta e diretor de "Memórias Póstumas"


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