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GUILHERME WISNIK
Subjetividades domésticas
Livro faz inventário de casas "criadas" pela modernidade, como a existencialista, a pragmática e a comunal
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QUAL FOI o legado do século 20
para a nossa cultura doméstica? Tal é o mote seguido pelo arquiteto espanhol Iñaki Ábalos
em "A Boa-Vida: Visita Guiada às
Casas da Modernidade" (Gustavo
Gili, 208 págs., R$ 75,25). Sem pretensões conclusivas, o livro faz um
inquietante inventário de diversas
casas "inventadas" pela modernidade: a existencialista, a pragmática, a
fenomenológica, a comunal, e sua
desconstrução pós-estruturalista.
Privilegiando a dimensão do imaginário contida em cada um desses
distintos modos de habitar, o autor
vai revelando os diferentes sujeitos
sociais supostos em tais modelos.
O seu alvo de ataque é a pretensão
universalista que ficou colada à imagem da casa moderna, que o autor
chama de "positivista", situando-a
como apenas um modelo entre outros. O único, aliás, que em sua opinião se encontra hoje definitivamente esgotado.
Contra a obsessão higiênica, ideal
e anônima do positivismo (a célula-mínima, a família-tipo), Ábalos afirma o papel decisivo da subjetividade
para os outros braços da modernidade. Nessa trilha, somos guiados
não apenas através de casas projetadas por arquitetos, mas também pela intensidade sensorial das casas-ateliê de Picasso (táteis em vez de
técnicas) e do sobrado-bricolagem
de monsieur Hulot, de Jacques Tati
("Mon Oncle", 1957).
Assim como pela anarquia extrovertida das comunas pop nova-iorquinas dos anos 60 (como a Factory
de Andy Warhol), que converteram
a moradia em trabalho ao mesmo
tempo em que faziam da arte um viver. Ou, ainda, pela casa pré-fabricada de Buster Keaton ("One Week",
1920), e sua incapacidade de montá-la como espelho da impossibilidade
de se recompor um horizonte doméstico e familiar "normal". Nada,
portanto, de homens universais,
mas de indivíduos bem particulares:
o eterno menino em férias (Picasso
e Hulot), o membro de uma tribo
que vive na cidade e a consome
(Warhol) e o cidadão que internalizou as divisões sociais a ponto de se
tornar um autômato (Keaton).
Também na esfera da arquitetura,
o autor resgata o papel crucial da dimensão subjetiva para muitos projetos. É o caso das casas-pátio de
Mies van der Rohe, dos anos 30, e
das casas californianas dos anos 50
("pragmáticas"), como as Case
Study Houses. Que sujeito essas residências ao mesmo tempo supõem
e projetam?
No segundo caso: a mulher independente, liberal e ativa, que se libertou das tarefas domésticas para
gozar o conforto e a flexibilidade da
sociedade de consumo. E, no primeiro, o homem urbano sem família
nem metafísica. O solitário que afirma a sua existência como potência
da vontade, assim como o "super-homem" nietzschiano. Daí a horizontalidade extensa e sem barreiras
desses espaços domésticos, como
que feitos de uma matéria anti-gravitacional: templos de um sujeito irredutível e sem transcendência, isto é, moderno. Na agilidade de suas páginas, o livro nos convida a visitar
um século não inteiramente real, mas latente. Em que a "morte do sujeito" contracena com uma subjetividade soberana e afirmativa.
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