São Paulo, segunda-feira, 27 de agosto de 2007

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GUILHERME WISNIK

Subjetividades domésticas


Livro faz inventário de casas "criadas" pela modernidade, como a existencialista, a pragmática e a comunal

QUAL FOI o legado do século 20 para a nossa cultura doméstica? Tal é o mote seguido pelo arquiteto espanhol Iñaki Ábalos em "A Boa-Vida: Visita Guiada às Casas da Modernidade" (Gustavo Gili, 208 págs., R$ 75,25). Sem pretensões conclusivas, o livro faz um inquietante inventário de diversas casas "inventadas" pela modernidade: a existencialista, a pragmática, a fenomenológica, a comunal, e sua desconstrução pós-estruturalista.
Privilegiando a dimensão do imaginário contida em cada um desses distintos modos de habitar, o autor vai revelando os diferentes sujeitos sociais supostos em tais modelos.
O seu alvo de ataque é a pretensão universalista que ficou colada à imagem da casa moderna, que o autor chama de "positivista", situando-a como apenas um modelo entre outros. O único, aliás, que em sua opinião se encontra hoje definitivamente esgotado.
Contra a obsessão higiênica, ideal e anônima do positivismo (a célula-mínima, a família-tipo), Ábalos afirma o papel decisivo da subjetividade para os outros braços da modernidade. Nessa trilha, somos guiados não apenas através de casas projetadas por arquitetos, mas também pela intensidade sensorial das casas-ateliê de Picasso (táteis em vez de técnicas) e do sobrado-bricolagem de monsieur Hulot, de Jacques Tati ("Mon Oncle", 1957).
Assim como pela anarquia extrovertida das comunas pop nova-iorquinas dos anos 60 (como a Factory de Andy Warhol), que converteram a moradia em trabalho ao mesmo tempo em que faziam da arte um viver. Ou, ainda, pela casa pré-fabricada de Buster Keaton ("One Week", 1920), e sua incapacidade de montá-la como espelho da impossibilidade de se recompor um horizonte doméstico e familiar "normal". Nada, portanto, de homens universais, mas de indivíduos bem particulares: o eterno menino em férias (Picasso e Hulot), o membro de uma tribo que vive na cidade e a consome (Warhol) e o cidadão que internalizou as divisões sociais a ponto de se tornar um autômato (Keaton).
Também na esfera da arquitetura, o autor resgata o papel crucial da dimensão subjetiva para muitos projetos. É o caso das casas-pátio de Mies van der Rohe, dos anos 30, e das casas californianas dos anos 50 ("pragmáticas"), como as Case Study Houses. Que sujeito essas residências ao mesmo tempo supõem e projetam?
No segundo caso: a mulher independente, liberal e ativa, que se libertou das tarefas domésticas para gozar o conforto e a flexibilidade da sociedade de consumo. E, no primeiro, o homem urbano sem família nem metafísica. O solitário que afirma a sua existência como potência da vontade, assim como o "super-homem" nietzschiano. Daí a horizontalidade extensa e sem barreiras desses espaços domésticos, como que feitos de uma matéria anti-gravitacional: templos de um sujeito irredutível e sem transcendência, isto é, moderno. Na agilidade de suas páginas, o livro nos convida a visitar um século não inteiramente real, mas latente. Em que a "morte do sujeito" contracena com uma subjetividade soberana e afirmativa.

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