São Paulo, Segunda-feira, 27 de Setembro de 1999
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FERNANDO GABEIRA

Introdução ao crime por encomenda

Um casal de sindicalistas roda com seu carro pelas ruas do Rio. A moto com duas pessoas se aproxima e o carona dispara os tiros certeiros. A moto escapa entre os carros e o casal agoniza para morrer alguns minutos depois.
O casal, Marcos e Edma, morreu porque denunciava irregularidades no Conselho Nacional de Enfermagem. O mesmo tipo de crime, no entanto, tem se repetido no Rio e em outras grandes cidades: a moto se aproxima, o carona faz os disparos e, graças a um poder de arranque maior e à própria flexibilidade do veículo, os assassinos desaparecem com rapidez.
Lembro que uma série de crimes em Medellín também começou assim. Era paga pelo cartel de Pablo Escobar e mobilizava adolescentes dos bairros pobres da cidade. Tornaram-se célebres, com o nome de sicários. Bastava pronunciar este nome para sentir um arrepio de medo.
Crimes sob encomenda são difíceis de evitar. Mas eles têm uma presença forte na história contemporânea do Brasil. Recentemente, um matador profissional, Chapéu de Couro, chegou a depor no Congresso, onde aliás, em outras épocas, foi feita a única tentativa articulada de entender esse tipo de crime: a CPI da pistolagem.
Com a prisão do deputado Hildebrando Pascoal, o tema voltou à tona. Tanto no caso dele como no caso do Conselho Nacional de Enfermagem, as coisas vêm à tona com muito atraso e são necessários muitos crimes para que as pessoas se dêem conta de que não se trata de algo isolado.
No Rio, os dois sindicalistas que denunciavam o Conselho Nacional de Enfermagem acompanharam pessoalmente as investigações sobre dois crimes anteriores, cometidos para se evitar denúncia contra o pequeno grupo que domina a entidade. Dois motoristas morreram também assassinados por matadores profissionais que sabiam como seguir e atirar numa vítima.
O governo deveria, pelo menos, criar um grupo de trabalho que examinasse todos os crimes por encomenda e tentasse extrair algumas consequências práticas de seu estudo. Se os mandantes sempre repetem a dose contra seus inimigos é sinal de que se sentiram seguros. Este é um ângulo da questão. O outro ângulo: se sempre repetem a dose, por que não se preparar para desmascará-los?
O número de crimes tem aumentado, mas os esforços para estudá-los são ainda bem precários no Brasil. Na Colômbia, os sicários eram um grupo social bem definido, viviam em lugares determinados e trabalhavam para um cartel com objetivos também conhecidos. Era bem mais fácil estudá-los.
No Brasil, grande parte dos crimes é de natureza política. Os praticados dentro da lógica do tráfico de drogas (bando ou luta por pontos) são bastante definidos e quase sempre aparecem também na forma de chacinas nas favelas e periferias.
Em ambos os casos, a grande dificuldade da investigação é o medo das testemunhas. Um medo bastante razoável, porque quem vê um crime dessa natureza compreende instantaneamente como uma pessoa comum é vulnerável a ele. E, sem garantias, desiste de depor.
Não há necessidade de o clima de violência no Brasil atingir os patamares colombianos, onde a presença de guerrilha e grupos paramilitares agrava o quadro. No entanto é preciso cada vez mais que os estudos oficiais e acadêmicos se articulem.
Um conhecimento mais profundo do problema não vai resolvê-lo. Mas se tivéssemos, por exemplo, em algum ponto do Brasil, um setor que acendesse o sinal vermelho, parte dos crimes atribuída a Hildebrando Pascoal teria sido evitada, o mesmo valendo para essa onda de assassinatos que envolve o Conselho Nacional de Enfermagem.
As condições para evitar um crime desse tipo são precárias e devem permanecer assim, considerando o ritmo das coisas no Brasil. Evitar que certos grupos cometam crimes em série é perfeitamente possível, desde que a gente aprenda a lição. Diante da rapidez do detonar de um revólver e do arranque de uma moto, nossa lentidão é mais do que paquidérmica. É trágica.



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