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CARLOS HEITOR CONY
Álvares de Azevedo, o amante da morte
Ao morrer , em 1852, era
inédito, quase a totalidade
de sua obra não fora publicada
em livro. Não teve tempo de construir uma biografia. Mesmo assim, 150 anos depois de quem viveu apenas 20, ainda se fala nele.
E, ao longo deste século e meio,
muitos outros também falaram
dele e continuarão falando apesar das mudanças do gosto literário que criaram novos parâmetros.
Foi chamado de ""o noivo da
morte" no título de um livro de
ensaios sobre a sua obra. É impossível falar dele e dela, do autor e
da obra, sem associá-lo à morte.
O romantismo tinha dois pés
que não eram de barro: o amor e
a morte. Movimento importado,
só não foi uma subescola literária
no século 19 porque se abrasileirou, porque se abriu para a nossa
paisagem como nenhuma outra
escola o fizera antes nem o faria
depois, nem mesmo o modernismo de 22.
Absorveu nossos bosques, nossas palmeiras onde canta o sabiá,
nossas borboletas de asas azuis
que, antes de serem espetadas nas
bandejas que os turistas até hoje
compram, foram perseguidas por
todos nós, na liberdade dos nossos
oito anos. Comprou até mesmo
nossos índios, que serviriam de
troféus exóticos, como os papagaios, para serem mostrados às
cortes européias.
Ao contrário do classicismo,
que deificava a morte, o alambique romântico destilou a morte e
nela buscou a solução para os
conflitos da condição humana.
Werther, levado ao suicídio pela
impossibilidade de amar; Iracema, anagrama da América, cobiçada e possuída pelo invasor.
Se de um lado produzimos um
romantismo viril, como o de Castro Alves, de outro tivemos o romantismo ambíguo de Álvares de
Azevedo, um romantismo chupado de seus grandes modelos, como
Byron, Lamartine e Victor Hugo,
até mesmo o romantismo gótico
de Hoffman nos contos extraordinários de ""A Noite na Taverna".
Pagando o tributo antecipado
de um sofrimento que não sofreu,
tão ao gosto dos românticos, o
poeta teve vida curta porque breve e obra curta, porém grande.
Refugiou-se no romantismo que
dominava o cenário europeu em
todas as artes, não viveu o suficiente para embarcar numa
aventura como a de Byron, lutando pela independência da Grécia.
Ao analisarmos a obra de um
clássico, esquecemos sua vida. Ao
estudarmos um romântico, é inevitável a procura de sua biografia. O clássico precisava viajar, como Ulisses, Enéas, Gama, até
mesmo o Altíssimo Poeta que viajou tão longe que chegou ao inferno.
O romântico não precisa sair de
seu quintal e, quando sai, como
Gonçalves Dias e Casimiro de
Abreu, é no quintal que busca a
sua canção e com ela eterniza o
seu gesto. Álvares de Azevedo,
nascido em São Paulo, pouquíssimo viajou no tempo e no espaço.
Em sua fase no Rio de Janeiro, e
ao contrário de Byron, que andou
por toda a parte com seu engenho
e arte, Álvares de Azevedo deixou-nos apenas o relato de uma
viagem do Catumbi à rua do Catete, a cavalo, para ver uma namorada.
Ele, o noivo da morte, teria namoradas na vida real? Como explicar seu amor exacerbado pela
irmã e pela mãe? Sem ser um estudioso do assunto, acredito que
Álvares de Azevedo, dominando
línguas, adquirindo uma cultura
espantosa para a sua idade e para
o seu tempo, exerceu com lucidez
aquilo que é chamado de ""sexo
dos anjos", cujo limite seria a posse da morte, com a qual não chegou a noivar, uma vez que logo se
tornou amante dela e de sua inexorabilidade.
Amante da morte, amante artesanal, amante amador, que sabia
ter arte curta e a vida mais curta
ainda. A pressa em penetrar na
morte foi a afobação do amante, e
não a espera comportada do noivo.
Um poema de ""A Lira dos 20
Anos", intitulado ""Um Cadáver
de Poeta", revela sua complexa
sensualidade e talvez sua própria
sexualidade: ""Ninguém, o conheceu; mas conta o povo/que, ao
lançá-lo no túmulo, o coveiro/
quis roubar-lhe o gibão. Despiu o
moço/e viu -talvez é falso- níveos seios...". A citação faz lembrar Guimarães Rosa, em ""Grande Sertão: Veredas": somente com
a morte do Diadorim, Riobaldo
descobre que não amava um cangaceiro, amava uma mulher.
E, de repente, surge o piadista
-antecedendo de um século o
poema-piada tão frequentado pelos poetas de 22, Mário e Oswald
de Andrade, Bandeira e Drummond: ""Minha desgraça não é ser
poeta:/é ter para escrever todo um
poema/ e não ter um vintém para
uma vela".
Enquanto os parnasianos, que
se voltaram contra os românticos,
criticando-lhes o descaso pela forma, fazendo Bilac dedicar alguns
de seus versos mais conhecidos ao
polimento do poema, Álvares detestava a lima, lamentava o pó
que sobra dos versos rigorosamente perfeitos, ele que fez uma
das quadras mais repetidas da
poética nacional: ""Descansem o
meu leito solitário/ na floresta dos
homens esquecida,/ à sombra de
uma cruz -e escrevam nela:/ foi
poeta, sonhou e amou na vida...".
Não se resiste à sedução de imaginar o que o poeta poderia ter
produzido se tivesse vivido mais
dez ou 20 anos. Mas não haveria
sentido num Álvares de Azevedo
amadurecido pelo tempo.
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