São Paulo, sexta-feira, 27 de setembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Álvares de Azevedo, o amante da morte

Ao morrer , em 1852, era inédito, quase a totalidade de sua obra não fora publicada em livro. Não teve tempo de construir uma biografia. Mesmo assim, 150 anos depois de quem viveu apenas 20, ainda se fala nele. E, ao longo deste século e meio, muitos outros também falaram dele e continuarão falando apesar das mudanças do gosto literário que criaram novos parâmetros.
Foi chamado de ""o noivo da morte" no título de um livro de ensaios sobre a sua obra. É impossível falar dele e dela, do autor e da obra, sem associá-lo à morte.
O romantismo tinha dois pés que não eram de barro: o amor e a morte. Movimento importado, só não foi uma subescola literária no século 19 porque se abrasileirou, porque se abriu para a nossa paisagem como nenhuma outra escola o fizera antes nem o faria depois, nem mesmo o modernismo de 22.
Absorveu nossos bosques, nossas palmeiras onde canta o sabiá, nossas borboletas de asas azuis que, antes de serem espetadas nas bandejas que os turistas até hoje compram, foram perseguidas por todos nós, na liberdade dos nossos oito anos. Comprou até mesmo nossos índios, que serviriam de troféus exóticos, como os papagaios, para serem mostrados às cortes européias.
Ao contrário do classicismo, que deificava a morte, o alambique romântico destilou a morte e nela buscou a solução para os conflitos da condição humana. Werther, levado ao suicídio pela impossibilidade de amar; Iracema, anagrama da América, cobiçada e possuída pelo invasor.
Se de um lado produzimos um romantismo viril, como o de Castro Alves, de outro tivemos o romantismo ambíguo de Álvares de Azevedo, um romantismo chupado de seus grandes modelos, como Byron, Lamartine e Victor Hugo, até mesmo o romantismo gótico de Hoffman nos contos extraordinários de ""A Noite na Taverna".
Pagando o tributo antecipado de um sofrimento que não sofreu, tão ao gosto dos românticos, o poeta teve vida curta porque breve e obra curta, porém grande. Refugiou-se no romantismo que dominava o cenário europeu em todas as artes, não viveu o suficiente para embarcar numa aventura como a de Byron, lutando pela independência da Grécia.
Ao analisarmos a obra de um clássico, esquecemos sua vida. Ao estudarmos um romântico, é inevitável a procura de sua biografia. O clássico precisava viajar, como Ulisses, Enéas, Gama, até mesmo o Altíssimo Poeta que viajou tão longe que chegou ao inferno.
O romântico não precisa sair de seu quintal e, quando sai, como Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, é no quintal que busca a sua canção e com ela eterniza o seu gesto. Álvares de Azevedo, nascido em São Paulo, pouquíssimo viajou no tempo e no espaço. Em sua fase no Rio de Janeiro, e ao contrário de Byron, que andou por toda a parte com seu engenho e arte, Álvares de Azevedo deixou-nos apenas o relato de uma viagem do Catumbi à rua do Catete, a cavalo, para ver uma namorada.
Ele, o noivo da morte, teria namoradas na vida real? Como explicar seu amor exacerbado pela irmã e pela mãe? Sem ser um estudioso do assunto, acredito que Álvares de Azevedo, dominando línguas, adquirindo uma cultura espantosa para a sua idade e para o seu tempo, exerceu com lucidez aquilo que é chamado de ""sexo dos anjos", cujo limite seria a posse da morte, com a qual não chegou a noivar, uma vez que logo se tornou amante dela e de sua inexorabilidade.
Amante da morte, amante artesanal, amante amador, que sabia ter arte curta e a vida mais curta ainda. A pressa em penetrar na morte foi a afobação do amante, e não a espera comportada do noivo.
Um poema de ""A Lira dos 20 Anos", intitulado ""Um Cadáver de Poeta", revela sua complexa sensualidade e talvez sua própria sexualidade: ""Ninguém, o conheceu; mas conta o povo/que, ao lançá-lo no túmulo, o coveiro/ quis roubar-lhe o gibão. Despiu o moço/e viu -talvez é falso- níveos seios...". A citação faz lembrar Guimarães Rosa, em ""Grande Sertão: Veredas": somente com a morte do Diadorim, Riobaldo descobre que não amava um cangaceiro, amava uma mulher.
E, de repente, surge o piadista -antecedendo de um século o poema-piada tão frequentado pelos poetas de 22, Mário e Oswald de Andrade, Bandeira e Drummond: ""Minha desgraça não é ser poeta:/é ter para escrever todo um poema/ e não ter um vintém para uma vela".
Enquanto os parnasianos, que se voltaram contra os românticos, criticando-lhes o descaso pela forma, fazendo Bilac dedicar alguns de seus versos mais conhecidos ao polimento do poema, Álvares detestava a lima, lamentava o pó que sobra dos versos rigorosamente perfeitos, ele que fez uma das quadras mais repetidas da poética nacional: ""Descansem o meu leito solitário/ na floresta dos homens esquecida,/ à sombra de uma cruz -e escrevam nela:/ foi poeta, sonhou e amou na vida...".
Não se resiste à sedução de imaginar o que o poeta poderia ter produzido se tivesse vivido mais dez ou 20 anos. Mas não haveria sentido num Álvares de Azevedo amadurecido pelo tempo.


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