São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 2005

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FESTIVAL DO RIO

"Last Days" ultrapassa a lamentação e fecha trilogia do diretor sobre a morte iniciada em 2002 com "Gerry"

Van Sant observa o suicídio além da dor e do lamento

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

"Last Days", exibido pela primeira vez no Brasil anteontem, pode ser visto como uma estranha variação de um filme de zumbi. O protagonista Blake (Michael Pitt) é como um morto-vivo, fantasma ainda encarnado que caminha por uma casa soturna, habitada por amigos vampiros que estão ali para sugar o pouco de energia que lhe resta. A morte é questão de tempo.
Melhor não esperar, portanto, a assumida inspiração nos últimos dias de Kurt Cobain. "Last Days" não é para fãs do Nirvana, muito menos uma tentativa de reconstituir fielmente os últimos dias de alguém transformado em mito.
Gus van Sant não demonstra o menor interesse no "como foi", tampouco apela para a falsa polêmica na questão do "suicídio ou assassinato?". A natureza especulativa do filme é de outra ordem e, no entanto, a questão do mito é central, na medida em que um dos tópicos investigados é o fardo do homem transformado em lenda-viva, principalmente quando esse feito é alheio à sua vontade. O mito, com seus aspectos mórbidos, é como a morte em vida.
Blake vive completamente fechado. Homem transformado em clichê (como lhe diz cruelmente uma amiga), já não parece habitar a casa de campo onde passará seus últimos dias, (des)acompanhado dos amigos. Habita apenas seu corpo, murmura palavras incompreensíveis, esquiva-se do detetive que vem descobrir seu paradeiro e não estabelece diálogos a não ser com os instrumentos que ainda se arrisca a tocar.
É tristemente cômico o encontro de Blake com os que ainda batem à porta da casa, como o vendedor de anúncios das "Páginas Amarelas". São belos os momentos em que ainda faz música. Duas das melhores seqüências trazem seus últimos sopros criativos. Na primeira, sozinho, arranca sons de vários instrumentos. A câmera o observa da janela e vai se afastando quase imperceptivelmente, sem que, contudo, o som diminua de volume. Na segunda, ele toca uma melancólica balada grunge.
"Last Days" fecha a trilogia mórbida de Van Sant iniciada em 2002 com "Gerry" (a morte pelas mãos de um amigo) e que continuou com "Elefante" (a morte pelas mãos de desconhecidos). Trata-se, aqui, da morte pelas próprias mãos -mas, como nos outros filmes, inspirados em fatos reais, ela sempre está ligada a elementos do mundo exterior (o deserto em "Gerry", a cultura das armas em "Elefante", a mitologia da indústria cultural em "Last Days").
Mais uma vez, Van Sant demonstra impressionante maturidade artística, desenvolvendo um exercício de estilo que não se aprisiona em soluções formalistas. "Last Days" de certa maneira se aproxima mais de "Gerry" em sua falta de acontecimentos e clímax, mas sua câmera flutuante e fantasmagórica e suas dobras temporais estão mais próximas de "Elefante". O que se acrescenta, aqui, é um uso brilhante do som, talvez um elemento mais importante do que a imagem no filme.
Num trabalho que conta com a consultoria de Kim Gordon e Thurston Moore, do Sonic Youth, as badaladas dos sinos das igrejas, as "ladainhas" dos cultos religiosos vizinhos, os sons da natureza e até Bach, no desfecho do filme, ajudam a compor, com as notas tocadas por Blake, o corpo musical de um filme-réquiem, de tom absurdamente triste, mas que não se reduz à pura lamentação.


Last Days
    
Quando: sexta, às 16h e às 22h45, no Estação Ipanema 2; e sáb., às 14h, no Estação Botafogo 1 (veja endereços e preços em www.festivaldorio.com.br)


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